A audiência de custódia como conquista civilizatória

Caso de juíza que ofereceu café para preso que estava com frio despertou revolta nas redes; mas tratamento justo é uma obrigação da lei e da civilização

Escrever é um desafio. Por mais que eu tente fazer da escrita um hábito, qualquer início de rascunho sempre tem um efeito paralisante, provocando-me a pensar por dias sobre a forma de organização dos pensamentos no papel. Início, meio, fim: como concatenar ideias de maneira que faça sentido a mim e àquele que lê?

Porém, escrever sobre um tema sobre o qual repousa uma visão tão pejorativa e carregada de estigmas pela opinião pública, além de um desafio, é uma responsabilidade. É preciso mais que refletir sobre a sistematização do texto. Nasce aqui quase que uma missão, uma incumbência de estimular o pensar a partir de ponderações comprometidas com a realidade, sem interromper o debate, mas ao mesmo tempo refutando concepções que incitem o ódio, o desprezo e a intolerância em face de determinados indivíduos e grupos sociais. É preciso de posicionamento, é necessário sair do comodismo da neutralidade. Dar nome aos bois e assumir um lado.

Ao definir que o tema deste texto seria a audiência de custódia, foi inevitável pensar sobre essa responsabilidade. A responsabilidade em falar sobre um assunto que ainda gera tantas perspectivas equivocadas, estimuladas pelo sensacionalismo midiático e por discursos apartados dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito. Sendo a sociedade diariamente exposta a narrativas que apontam a garantia dos direitos humanos em contraposição à segurança pública, como lançar uma reflexão que desvie dessa armadilha dualista e, ao mesmo tempo, provoque um pensar racional acerca da audiência de custódia como uma conquista civilizatória em prol do aprimoramento do sistema de justiça e, portanto, que interessa a todos os cidadãos?

Foi então que decidi iniciar essa breve análise partindo de uma situação real. A audiência de custódia é o ato que permite o contato imediato do juiz, do Ministério Público e da Defesa com a pessoa presa, para que esta seja vista e enxergada para além dos papeis e documentos do auto de prisão em flagrante. Todos frente a frente, cara a cara. Pareceu pertinente, assim, começar a abordagem a partir de um trecho da realidade exposto durante a realização de uma audiência de custódia:

O senhor está com frio? Tem que tirar as algemas dele. Audiência não pode ocorrer com o réu algemado (…) O senhor está com frio? Desliga o ar-condicionado, por favor (…) Pega um café para o senhor Luan, porque eu não vou fazer audiência com ele tremendo.”

Juíza Lana Leitão, durante uma audiência de custódia

No início de 2024 alguns perfis de pessoas públicas repercutiram em suas páginas um vídeo em que uma juíza do Tribunal de Justiça de Roraima oferece café e casaco a uma pessoa presa. Algemado, com a cabeça baixa e tremendo de frio diante da magistrada, o rapaz de olhos assustados aceita o café e tem seu corpo coberto por um casaco fornecido pelo advogado. Garantidas condições adequadas ao jovem de 20 anos, tem início a audiência de custódia.

O tom irônico e de ataque pautou os comentários à atuação da juíza. “Só faltou pedir desculpas ao preso”; “Eu só acredito vendo. Eu vendo não acredito”; “Isso é bandidolatria: vítimas sendo tratadas como bandidos e bandidos sendo tratados como vítimas”.

A partir de então, impulsionado por diversos personagens do cenário público, desde políticos até membros do sistema de justiça, o vídeo teve milhões de visualizações nas redes sociais. Lançada contra sua vontade no meio da gritaria sensacionalista das redes sociais, a magistrada foi logo acusada de privilegiar bandidos. “Por que não oferece café aos policiais?” – um internauta questionou.

Diante da repercussão nacional do caso, o Associação dos Magistrados de Roraima lançou uma nota afirmando que a juíza apenas cumpriu com as exigências legais para a realização do ato.

De fato, o tratamento digno a pessoas presas não é privilégio, mas simples cumprimento da lei. Toda a legislação brasileira se assenta sobre a premissa da dignidade da pessoa humana como característica inerente ao ser humano, não dependendo seu reconhecimento de qualquer ato discricionário do Estado. Assim, enquanto direito fundamental que assiste a todos os seres humanos, não se pode falar em maior ou menor dignidade, ou, ainda, na ausência dela. Por isso é que o fato de uma pessoa estar privada de liberdade não lhe retira ou diminui a dignidade – ninguém perde o status de pessoa por ter cometido um crime.

Essa compreensão representa o rompimento com qualquer pensamento ou ação tendentes à coisificação do ser humano, concepção esta responsável pelas inúmeras atrocidades verificadas ao longo da História em face das minorias e, atualmente, pelo cenário de violação institucionalizada de direitos nas prisões brasileiras. Em relação à população carcerária, a noção de que indivíduos privados de liberdade são meros objetos sob a tutela do Estado figura como principal sustento a um discurso justiceiro que, por meio da relativização de direitos desses setores, prega a existência de um inimigo desumanizado a ser combatido e aniquilado. O Estado de Direito cede espaço à barbárie.

A audiência de custódia não enfraquece a segurança pública, tampouco favorece “criminosos”. É, em verdade, um meio de se garantir o respeito ao devido processo legal, aprimorar o sistema de justiça e conectar o mundo jurídico e seus atores à realidade brasileira por trás do papel, lançando luz a questões sociais, econômicas, de saúde pública e acesso ao trabalho, renda e moradia que escapam à folha do papel. O contato imediato da pessoa presa com o juiz permite uma atuação mais individualizada, atenta às particularidades do caso concreto e mais efetiva nas respostas a demandas que muitas vezes não estão na órbita do Direito Penal.

Em linhas gerais, a audiência de custódia consiste na apresentação da pessoa presa ao juiz no prazo de 24 horas após a prisão, quando será ouvida na presença do Ministério Público e da Defesa – advogado ou defensor público. O instituto foi oficialmente implementado no Brasil no ano de 2015, em projeto coordenado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em cumprimento à Convenção Americana dos Direitos Humanos e ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, ambos ratificados pelo Brasil 23 anos antes. Portanto, não houve “invencionice” por parte do CNJ, mas simplesmente a observância aos tratados internacionais que versam sobre direitos humanos dos quais o país é signatário e obrigou-se a observar.

As perguntas formuladas no ato não podem se relacionar diretamente ao mérito dos fatos, devendo ser voltadas à elucidação das particularidades existenciais do indivíduo, como histórico de doença grave, incluídos transtornos mentais e dependência química, gravidez, existência de filhos menores ou dependentes que estejam sob seus cuidados, etc. De posse de tais informações e à luz do caso concreto, caberá ao juiz analisar a pertinência da manutenção ou não da prisão, com a possibilidade, em caso de liberdade provisória, de encaminhamento da pessoa a órgãos assistenciais. Ainda, é o momento em que o juiz poderá avaliar eventuais ocorrências de tortura ou maus tratos, determinando as providências cabíveis.

Assim, além de conformar o processo penal brasileiro aos tratados internacionais de direitos humanos e ser meio de redução e controle de prisões ilegais e desnecessárias, a audiência de custódia figura como um dos principais instrumentos de combate e prevenção à tortura, chamando o magistrado a tomar uma postura séria e cuidadosa diante de relatos de ilegalidades e abusos cometidos na atuação policial. Ainda que tenhamos ciência acerca da subnotificação dos casos, seja em razão da naturalização das abordagens policiais truculentas, seja porque a pessoa presa não se sente segura para expor o ocorrido em audiência, esse passo é crucial rumo à ruptura da lógica que neutraliza a violência institucional – sobretudo aquela em face de mulheres e homens negros.

Tal desiderato envolve, antes de tudo, o despertar do senso de responsabilidade do sistema de justiça perante a condição da pessoa encarcerada, afastando a noção de combate ao inimigo tão difundida pela mídia para abrir espaço ao seu acolhimento como pessoa humana titular de direitos. A audiência de custódia, no cenário de omissão e desumanização que define as práticas do sistema penal brasileiro, conclama o julgador a um olhar mais atento e profundo da realidade que o cerca, deslocando seu âmbito de visão da letra da lei e do processo para o rosto da pessoa encarcerada.

Assim, ao estimular que a magistratura perceba seu papel na proteção de direitos para além da simples aplicação pura e simples da lei penal, a audiência de custódia é um instrumento garantidor da cidadania. Representa, assim, conquista civilizatória do Estado Democrático de Direito em contraposição à barbárie decorrente da não observância de direitos e garantias fundamentais da pessoa humana.

Um Poder Judiciário independente, atento às realidades que julga e que tem como foco principal a garantia da dignidade humana, oferecendo um casaco e oferecendo um café a um rapaz que treme de frio diante de seus olhos, interessa a toda a sociedade. Celebremos a audiência de custódia como triunfo coletivo!

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