Mentiras sinceras me interessam

Às vezes a mentira, ao menos, demonstra algum nível de constrangimento, algum nível de percepção de erro. Mas quando a verdade cruel é dita sem rodeios, o verniz civilizatório se perde

Brasileiros que não vivem em Marte já ouviram – voluntária ou involuntariamente – Maior Abandonado, na voz de Cazuza ou Frejat.
Lá pelas tantas vem a frase que causa o incômodo: “Mentiras sinceras me interessam”. Nela, o eu poético se humilha, aceita ser enganado, desde que esteja com a pessoa desejada, ainda que como “raspa e resto”. Aceita algum tipo de consideração, ainda que mentirosa.

Esse incômodo pode ser racionalizado por uma dualidade interessante: de um lado flexibiliza os postulados: “mentira tem perna curta”, “quem fala a verdade não merece castigo”, “se mentir o nariz cresce” e tantas outras metáforas que crescemos ouvindo e condenam de forma absoluta a mentira. Por outro, a aceitação da mentira com algum verniz de virtude, pois o mentiroso estaria fazendo uma concessão benevolente e oferecendo uma emulação de afeto ao seu enganado interlocutor.

Quem milita com Direitos Humanos está acostumado a conviver com algum nível de mentira, afinal, algumas ilegalidades são minimizadas, justificadas e – não fiquemos de rodeio – os fatos são distorcidos para esconder violações.

Essas mentiras nos interessam?

Sempre achei que não até cruzarmos um nível civilizatório que imaginei que não veria. Trago aqui três ilustrações de verdades que não nos interessam.

A primeira ocorreu no Estado da Bahia, estado da federação que mais registra letalidade policial no Brasil. Após o registro de diversos óbitos em decorrência de ação policial, o então governador desse estado – do Partido dos Trabalhadores – afirmou que os policiais devem agir como “artilheiros diante do gol”.

Aqui não houve mentira, o chefe da polícia justificou nas entrelinhas que a polícia poderia matar, tal qual um “artilheiro na frente do gol”. Não trouxe o comum argumento do confronto, da periculosidade dos mortos, dos antecedentes, da região hostil, da apreensão de armas etc. Falou aquilo que acredita: a polícia deve fazer o gol e este gol é a morte. A verdade choca.

A segunda situação ocorreu mais recentemente, no Estado de São Paulo, em que houve o registro de diversos óbitos em confronto policial na baixada santista após o assassinato de um policial militar. Uma aparente contraofensiva policial deixou dezenas de mortos naquela região. O governador do Estado – bolsonarista do Republicanos –, ao ser questionado sobre o fato e possível acusação desta ação na ONU, não ficou de rodeios e concluiu com um “não tô nem aí”. De fato, aparentemente, não está nem aí mesmo: está é a verdade. A verdade choca.

A terceira situação ocorreu em uma Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em que a presidente do Tribunal de Justiça Desportiva e vice-presidente de uma subseção reproduziu a infeliz pérola “direitos humanos para humanos direitos”. Referida frase pode justificar qualquer barbárie contra qualquer pessoa, desde que o agente repute não se tratar de um “humano direito”.

A quantidade de camadas de preconceito e violência dessa afirmação é demasiada. De fato ela pensa dessa forma e disse essa – que é uma verdade para ela – em uma Comissão de Direitos Humanos. Não ficou de rodeios. Não justificou a ação em excludentes de ilicitude: apenas afirmou que humanos que não são “direitos” não devem ser titulares de Direitos Humanos. A verdade choca.

Essas situações fugiram daquilo que estamos acostumados: as mentiras justificantes, o escamoteamento de fatos, as trincheiras retóricas – presentes, inclusive, em decisões judiciais: se justifica em presumida e imaginária excludente de ilicitude para justificar uma ação violenta; em um convite inexistente para justificar uma invasão de domicílio; em um dolo eventual forçado para punir uma ação culposa; em uma jurisprudência não vinculante para sonegar um direito previsto em lei; em uma “garantia da ordem pública” distante para justificar uma prisão preventiva.

Ao falar a verdade os agentes rompem um limite civilizatório importante: entendem que aquelas verdades justificam ações que relativizam direitos fundamentais, como a própria vida, independentemente de qualquer pacto que limita a ação do Estado.

A mentira, ao menos, demonstra algum nível de constrangimento, algum nível de percepção de erro. Ouvir a verdade, nesse contexto, é chocante.
Foi aí que entendi que “mentiras sinceras me interessam”: os direitos humanos vivem de fato de “raspas e restos” e a mentira – por incrível que pareça – externaliza algum tipo de virtude no contexto de constante vilipêndio de pactos civilizatórios elementares.

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