Martim, uma viagem por três países e a dura luta antimanicomial

A história desse jovem diagnosticado com psicose mostra o quanto nossa sociedade está ainda despreparada para lidar com a desinternação responsável

O personagem da história que vou contar só me deixou que a contasse com a condição de que ele não pudesse ser identificado de jeito nenhum. A tarefa de lhe arrumar um nome fictício era bem simples, mas eu deliberadamente decidi complicá-la: queria um nome que honrasse sua história e não sabia ainda o que ou quem poderia me inspirar. Por sorte, numa das noites em que lia para o meu filho antes dele dormir, encontrei no livro “A estrada que não leva a lugar algum”, de Gianni Rodari, a minha inspiração: Martim.

No livro, Martim é uma criança e vive num vilarejo que possui três estradas. A primeira leva ao mar, a segunda à cidade e a terceira não chega a lugar algum. Por sempre ter expressado o seu desejo de desbravar a terceira estrada – apesar de muito desencorajado -, recebeu o nome de Martim Cabeçadura. Quando já tinha idade suficiente para atravessar a rua sem dar a mão ao avô, Martim encarou o próprio medo, desbravou a estrada sombria e ameaçadora que nunca acabava, chegou a se arrepender, até encontrar, surpreso, um castelo cheio de tesouros, com portas e janelas abertas. Uma senhora muito bonita e alegre, que lhe acenou para que entrasse no castelo, assim o recebeu no salão:

– Então você não acreditou!
– Não acreditei em quê?
– Na história da estrada que não levava a lugar algum.
– Era boba demais. Além disso, para mim existem mais lugares do que estradas.
– Claro, é só ter vontade de caminhar. Agora venha, quero que você conheça o castelo.

O nosso Martim é um jovem adulto, também parecia ter vontade de caminhar e, de fato, caminhou muito. O pouco que se sabe sobre sua caminhada é que teria iniciado em uma cidade da região metropolitana de Buenos Aires, teria passado por Ciudad Del Este no Paraguai, possivelmente chegou até o Estado de São Paulo e só parou em uma pequena cidade do norte do Paraná, em 2020. É a partir daí que passamos a saber mais sobre a sua vida, já que parte dela passa a ser registrada nos autos do processo criminal em que respondeu por perturbação do sossego, lesões corporais leves, resistência e dano ao patrimônio público.

Quem mais conta sobre Martim, infelizmente, não é ele mesmo. O pouco que Martim fala é difícil de compreender não só pelo castellano. Precisamos reconhecer a nossa imensa dificuldade em lidar com informações que nos deixam em dúvida entre o real e o delírio (quando, por exemplo, em sua entrevista à Defensoria Pública, afirmou ter atravessado a fronteira entre Paraguai e Brasil a nado). Nos autos do processo criminal, encontramos uma das pessoas que mais soube falar sobre ele: a dona de um restaurante que se compadecia com sua condição de pessoa em situação de rua e o alimentava com frequência. Ela teria emprestado seu telefone para que ele se comunicasse com a mãe, na Argentina, por videochamada, a qual lhe informou que Martim tomava remédios quando estava nervoso. A dona também disse que tentou ajudá-lo a voltar para a Argentina, mas as fronteiras estavam fechadas em função da pandemia e o plano não teria dado certo. Um dia, Martim apareceu exaltado no seu restaurante, resolveu perambular pelo salão e incomodar os demais clientes pedindo cigarro, não atendendo aos apelos da dona do restaurante para que saísse dali. Ela disse que Martim não ameaçou ninguém, mas que ainda assim sentiu medo e chamou a polícia. Martim concordou em sair diante da presença dos policiais, porém, do lado de fora do restaurante, passou a atirar pedras e até uma garrafa contra os militares e contra a viatura policial.

Durante o processo, Martim passou pela perícia psiquiátrica e foi diagnosticado como inimputável em razão de psicose não orgânica não especificada. O juízo decidiu sentenciá-lo com uma internação psiquiátrica pelo prazo mínimo de um ano, devendo ser reexaminado só ao final desse período para saber se poderia se tratar em liberdade. A sua defesa recorreu para que lhe fosse imposto o tratamento em liberdade, considerando sua primariedade e a natureza das infrações, mas o tribunal manteve a sentença, já que na própria perícia havia indicação para que fosse internado até a estabilização do seu quadro.

Acontece que Martim ficou muito mais tempo do que a sentença determinava. Aliás, antes mesmo de ser sentenciado, Martim foi mantido preso desde o flagrante, em 2020, sendo os três primeiros meses em uma cadeia pública. Depois foi transferido para o Complexo Médico Penal, onde permaneceu por dois anos até ser periciado de novo. O exame pericial demorou tanto para acontecer que a Defensoria Pública pediu ao tribunal para que ele fosse liberado. O tribunal negou o pedido sob o argumento de que havia justificativas idôneas para a ultrapassagem do prazo, consistentes na ausência de profissionais capacitados, bem como na interdição do estabelecimento pelo Conselho Regional de Medicina do Paraná (sic).

Era início de 2023 quando o juízo determinou a desinternação de Martim, após a perícia constatar que ele poderia ser tratado em liberdade. Sua prisão, porém, não terminou aí. No Complexo Médico Penal, ninguém conseguiu localizar sua família e ele acabou ficando por lá mesmo com alvará de soltura, já que naquela prisão, por anos, prevaleceu o entendimento que pessoas com sofrimento mental só podem gozar da liberação judicial se tiverem para onde ir. Nada surpreendente diante de um Estado do Paraná que, mesmo diante de toda atuação antimanicomial do Conselho Nacional de Justiça, demora em dar concretude à condenação que sofreu, em 2017, para criar serviços de acolhimento para egressos do Complexo Médico Penal que estejam na condição de asilares – pessoas que demandam cuidados em saúde mental e que perdem os vínculos com seus familiares e com sua comunidade de origem em função da internação. São tantas pessoas com sofrimento mental que foram e ainda são mantidas presas nessas condições que, mesmo sem atribuição formal, um grupo de trabalhadoras da Defensoria Pública do Paraná, do direito, da assistência social e da psicologia, tem assumido a missão de tentar encontrar alternativas fora da prisão e já acompanhou mais de setenta casos ao longo de quatro anos, reunindo tais iniciativas sob o nome de Projeto Desinstitucionalização Responsável ou, simplesmente, Desinst.

Na primeira conversa com as psicólogas Nayanne e Stéphanie Gaba, em outubro de 2023, Martim disse que nunca havia tido contato com a mãe enquanto esteve preso. Por sugestão de Martim, encontraram o perfil de sua mãe no Facebook. Mais tarde, ambas se deparam com um post da mãe sobre o desaparecimento do filho em 2020… A mãe já não tinha mais ativo o perfil na rede social, de modo que só restou apelar para as pessoas que comentaram o post. Depois de muita desconfiança, uma dessas pessoas revelou o contato dessa mãe, o que tornou possível o primeiro reencontro (virtual) entre Martim e seus familiares.

Quando pensávamos que as portas e as janelas da prisão estavam finalmente abertas para Martim sair, descobrimos que ele não tinha mais certidão, nem documento de identidade nem passaporte para voltar para a Argentina. Foi necessário esperar mais. Nayanne e Stéphanie correram atrás de ajuda, foram muitas as dúvidas sobre como resolver essa questão. Buscamos, enfim, socorro no Consulado do Paraguai e a sensibilidade do cônsul permitiu que ele obtivesse o passaporte emergencial em tempo recorde. Mas já era dezembro de 2023 e não queríamos que aquela família passasse mais um natal com ausências. Graças a doações de trabalhadores que o atenderam, Martim consegue roupas, mochila, dinheiro para lanche e uma passagem aérea para Buenos Aires ainda no dia 16 de dezembro.

A chegada na Argentina foi mais emocionante do que poderíamos imaginar. Apesar de cumprir os requisitos para ingressar no país, Martim foi barrado na imigração. A mãe de Martim, desesperada, dispara mensagens pelo whatsapp para Nayanne, que até tenta falar com a Defensoria Pública local. Depois de meia hora de pura tensão, a mãe de Martim encaminha a foto de um papel manuscrito, assinado por ela, em que se dirigia às autoridades argentinas afirmando se responsabilizar pelo tratamento do filho. Aquele termo de compromisso, sem qualquer respaldo legal, salvou Martim de ser levado para Assunção, no Paraguai. Não demora muito e a mãe, aliviada, começa a mandar os registros fotográficos da família reunida, todos muito radiantes, imagens que até hoje nos fazem chorar de alegria.

O Martim do livro também é recebido com festa quando retorna para sua cidade, onde pensavam que ele havia morrido. O nosso Martim escapou da invisibilidade, essa espécie de morte civil que atinge pessoas vulnerabilizadas pela combinação pobreza, seleção penal e sofrimento mental. Desfechos felizes como o de Martim são como tesouros de um castelo ao final de uma estrada assombrada, mas, confesso, que a raridade desses momentos me fazem amargar um certo pessimismo.

Quantas vezes, durante o trabalho do Desinst, eu e minhas colegas nos sentimos rumo a estradas que não levam a lugar algum? Seguimos um roteiro básico que se inicia a partir da escuta da pessoa em sofrimento mental, aquela que deve ser a protagonista de sua própria história. Depois de identificar familiares e municípios em que a pessoa nasceu ou morou, a equipe técnica (hoje composta só pela Tania Moreira, assistente social, e pela Nayanne) busca iniciar novos diálogos com quem pode significar a verdadeira liberdade para ela. Quando a conversa não avança, batemos às portas do Ministério Público e do Judiciário, mas, por mais óbvia que seja a proteção que essas pessoas recebem da Convenção da Pessoa com Deficiência, da Lei Brasileira de Inclusão, da Lei 10.216/01 (política de assistência à saúde mental no Brasil), e normas regulamentadoras do SUS e do SUAS (sistema único de assistência social), há juízos e promotorias de justiça que só reforçam o desejo de banimento de suas famílias e comunidades e pautam suas atuações apenas nas leis que tratam de crimes e de suas sanções. O que fazer quando as leis são negadas por quem tem o dever de afirmá-las? Para onde estamos indo, afinal?

Diferente do livro, o nosso Martim não voltou para casa com tesouros e presentes de um castelo, mas quem sabe sua história, assim como as fábulas de Gianni Rodari, deixe algumas lições. Pelo menos para mim, restou ainda mais forte a convicção de que a prisão deve dar lugar ao cuidado em liberdade, no território da pessoa merecedora da proteção legal, para se evitar o rompimento dos seus vínculos, essa pena mais que perpétua. Hoje no Paraná temos 34 pessoas em condição asilar. Ainda há 185 pessoas cumprindo medida de internação psiquiátrica e outras 159 em internação psiquiátrica cautelar (antes da sentença). Imagina quantos futuros candidatos à condição asilar ainda temos? O sofrimento mental já é um fator importante de fragilização das relações familiares e esta fragilidade é reforçada pelas dificuldades financeiras e pela insuficiência ou ausência dos serviços de assistência social e à saúde das prisões, dos municípios e do Estado. A manutenção de vínculos em um manicômio judiciário, como o Complexo Médico Penal, exige ainda vencer as naturais dificuldades que a visitação em prisões oferece em nome da segurança: é preciso apresentar muitos documentos para obter a carteirinha de visitação, ser virado pelo avesso em revistas corporais e ainda ser constrangido, durante as visitas, pelo olhar vigilante e desconfiado de agentes de segurança.

Para não terminarmos esse texto com tanta desesperança, é importante registrar que há atores do Poder Judiciário do Paraná influenciados pela política antimanicomial assumida pelo Conselho Nacional de Justiça em sua Resolução 497/2023. No presente momento, o Complexo Médico Penal, o único manicômio judiciário do Paraná, foi parcialmente interditado pelo juízo de execuções penais de Curitiba e não pode receber novas internações. Concomitante a isso, a INTERSAM, equipe de profissionais de psicologia e serviço social vinculada ao Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do TJPR, está iniciando o trabalho de subsidiar juízos criminais e de execução penal a decidir pelo melhor tratamento das pessoas com sofrimento mental em conflito com a lei, tendo a liberdade como primeira alternativa, assim como a Lei 10.216/01 determina. Assim, diante dos novos desafios, espero que a obstinação e a ousadia do Martim Cabeçadura nos guiem rumo a uma política de atenção às pessoas com sofrimento mental em conflito com a lei verdadeiramente comprometida com a vida e com a liberdade.

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