De uma exigência legal a uma revolução de inclusão e justiça: o poder das ações afirmativas

A inclusão equitativa e com igualdade de oportunidades dos grupos racialmente discriminados em um país tão desequilibrado e injusto é tarefa urgente

A Organização das Nações Unidas designou o dia 21 de março como o Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial. Essa data relembra que, nesse mesmo dia, no ano de 1960, na África do Sul, pessoas negras protestavam contra o Apartheid, um sistema legal que restringia os locais pelos quais elas podiam transitar. Apesar da natureza pacífica da manifestação, o exército sul-africano abriu fogo contra a multidão, causando a morte de 69 pessoas e deixando outras 186 feridas.

Passados mais de 60 anos desse crime inominável, no Brasil existem espaços em que pessoas negras continuam a enfrentar barreiras informais e sociais quase intransponíveis para adentrar e permanecer. Todos os dados estatísticos evidenciam uma retumbante falta de representatividade da população negra nos cargos públicos de maior destaque, o que, por certo, impacta direta e negativamente a identidade, reconhecimento e autoestima desse grupo social, especialmente das crianças negras que não se enxergam nesses ambientes de alto prestígio.

Para reverter esse cenário de profunda injustiça e assimetria, as ações afirmativas surgiram como instrumentos essenciais, atuando como um verdadeiro antídoto contra a exclusão social profundamente enraizada no Brasil. Diante de comprovadas barreiras sociais que limitam o acesso de pessoas negras a certas posições e carreiras, é fundamental e logicamente coerente estabelecer mecanismos de compensação que equilibrem as desvantagens adicionais enfrentadas por essas pessoas. Essas iniciativas já se provaram eficazes em vários países, gerando impactos positivos que, felizmente, começam a ser observados também no Brasil. Essas ações não apenas promovem a justiça social, mas também enriquecem os ambientes e setores que se tornam mais diversificados e inclusivos, refletindo assim a verdadeira composição da sociedade.

As ações afirmativas são estratégias fundamentais adotadas tanto por instituições públicas quanto privadas, com o objetivo de promover a igualdade de oportunidades para pessoas pertencentes a grupos que, por motivos históricos, se mostram subrepresentados em espaços de referência na sociedade. Embora uma das ações afirmativas mais debatidas seja a das cotas para pessoas negras, ela não foi a primeira adotada no Estado brasileiro nem é a única. Além dela, outras medidas têm sido implementadas, como as políticas para a inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, tratamento prioritário a crianças e idosos, bem como a recente regra de igualdade gênero aprovada pelo Conselho Nacional de Justiça para a promoção de juízes e juízas.

Se os argumentos baseados na justiça social não alcançam o coração e a mente de todas e todos, é fundamental destacar que, hoje em dia, as políticas de ações afirmativas que buscam promover a igualdade racial não são apenas recomendadas, mas sim exigidas por normativas legais. Essa realidade jurídica é fruto da relativamente recente ativação, no plano do Direito brasileiro, da Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância – norma jurídica ainda desconhecida de juristas e da sociedade em geral, em razão do racismo estrutural que inviabiliza medidas antirracistas –, que foi ratificada pelas duas Casas do Congresso Nacional com status de emenda constitucional. Assim, a Convenção passou a integrar a ordem jurídica doméstica, compondo o bloco de constitucionalidade nacional, o que se tornou factível a partir da abertura dada pelo § 3º, do art. 5º da Constituição da República.

Destaque-se que esse instrumento interamericano e constitucional de direitos antirracistas, inspirado nos princípios da igualdade e da não discriminação, fez fervilhar a obrigação por parte do Brasil de formular medidas especiais para proteger os direitos de indivíduos ou grupos que sejam vítimas da discriminação racial. Portanto, não pairam dúvidas sobre a juridicidade e vinculatividade dessas normas jurídicas constitucionais, que impõem deveres a todas as pessoas que se encontram no território brasileiro, notadamente aos agentes públicos.

Por intermédio do artigo 5º da referida Convenção, o Estado brasileiro se comprometeu a adotar políticas especiais e ações afirmativas necessárias para assegurar o exercício dos direitos das pessoas ou grupos sujeitos ao racismo, com o propósito de promover condições equitativas para a igualdade de oportunidades, a inclusão e o progresso.

Portanto, a linguagem do diploma normativo interamericano quanto às ações afirmativas é inequivocamente vinculante, no que inova a ordem jurídica brasileira. Logo, é possível dizer que está em vigor mandamento constitucional no sentido de que sejam criadas, mantidas, ampliadas as cotas raciais, entre outras ações afirmativas, não havendo mais espaço, portanto, de discricionariedade para a não adoção de cotas raciais.

As instituições políticas e do sistema de justiça não têm mais o direito de continuarem omissas na sua missão de vigiar o cumprimento da norma constitucional quanto à obrigatoriedade das cotas em níveis federal, estaduais e municipais.

Diante disso, o Ministério Público do Paraná mantém, a partir de seu Núcleo de Promoção da Igualdade Étnico-Racial (Nupier), vinculado ao Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos, projeto que visa a acompanhar e fomentar, junto aos Municípios do estado, a criação de legislação que trata da política de cotas raciais em concursos públicos ofertados pelas Administrações Públicas Municipais. A atuação prevê a interlocução com os Poderes Públicos Municipais – Executivo e Legislativo – com vistas a garantir a reserva de vagas a candidatos negros nos concursos públicos. De acordo com levantamento da unidade, atualmente, 157 cidades paranaenses têm legislação específica nesse sentido, tendo 133 delas aprovado leis a partir da ratificação da Convenção Interamericana Antirracista. Quando o projeto foi implantado, em 2021, apenas 24 municípios possuíam legislação sobre o tema. Este é um progresso notável, embora ainda insuficiente. Todas as instituições do poder público no Brasil devem seguir rigorosamente a legislação constitucional, garantindo a implementação efetiva das cotas raciais e outras ações afirmativas.

Como qualquer política pública, é vital que as ações afirmativas sejam acompanhadas de eficientes mecanismos de controle e fiscalização, garantindo que seus benefícios cheguem aos verdadeiros destinatários. Nesse contexto, as comissões de heteroidentificação emergem como ferramentas cruciais, necessitando de implementação e constante aprimoramento para prevenir fraudes e distorções de seus propósitos.

Isso se torna ainda mais relevante no Brasil, onde, conforme apontado por Oracy Nogueira, o racismo se manifesta mais pelas características fenotípicas do que pela ascendência direta, exigindo um olhar atento às nuances da identidade racial baseada na aparência, e não na genealogia.
Parafraseando a admirável e inspiradora Conceição Evaristo, para quem “a questão do negro não é para nós resolvermos, é para a nação” resolver, e amparados pela potente, cogente e necessária normativa interamericana e constitucional, ousamos arrematar dizendo que a inclusão equitativa e com igualdade de oportunidades dos grupos racialmente discriminados em um país tão desequilibrado e injusto é tarefa urgente para todas as instituições, órgãos e agentes públicos brasileiros.

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