Pisca-pisca

Então foi Natal. Você deve ter feito milhões de coisas. A gente, sobrevivente de AVC, também. Se é muita coisa para quem tem um cérebro inteiro, imagina para quem tem um cérebro machucado?

Todo fim de ano é a mesma coisa! Não sei como eu aguentava tanto estresse, porém, definitivamente tudo ficou muito mais difícil depois dos acidentes vasculares cerebrais que tive em 2019.

Sinceramente, não me lembro muito bem do primeiro natal na minha segunda vida, porque a lesão ainda era tão recente e minha memória não estava lá essas coisas. Apenas me lembro de flashes do Natal misturado com o Ano-Novo e pinceladas do lançamento do livro infantil da minha irmã, que acredito ter acontecido na mesma época. As três lembranças se confundem e se esvaem. Minha memória agora é assim.

Definitivamente, não me preocupei muito com as coisas de Natal naquele ano. Tinha acabado de ter o acidente e ainda pensava que no ano seguinte voltaria a ser a mesma de antes. Então, por que tentar forçar a barra e fazer todo aquele protocolo de correria de fim de ano? Deixei passar. Mas, no segundo ano, eu já tinha mais consciência que me corpo havia mudado para sempre e tentei me “superar” e entrar na correria cheia de ânimo para, no fim, me sentir… Frustrada. Bem que falam para a gente não criar expectativas…

Apesar de ser hemiparética, minhas sequelas motoras são aparentemente leves: não uso mais bengala, mexo o braço e a mão lesionada e apesar do braço um pouco encurvado, a maioria dos desconhecidos não percebe que tive AVC. Porém, cognitivamente, a história é outra. Já começa pelo excesso de barulho, que me irrita e me deixa zonza. Agora, ruídos são intensos para mim, ao ponto de um shopping se transformar num parque de diversões, com direito a montanha russa em forma de escada rolante. Quem teve o cérebro machucado entende bem o que digo: lidar com alturas, efeitos visuais e sonoros é como passar uma tarde na Disney, mas sem diversão. Toda vez que vou ao shopping, chego exausta em casa.

Quanto à culinária, nunca fui muito de cozinha (sou meio Lorelai Gilmore nesse aspecto), então, não posso reclamar de ficar horas na cozinha preparando uma ceia natalina ou de ano novo. Nunca me dei este luxo (ironia). Mas, tenho muitos amigos sobreviventes que tentam fazer isso, e quando conseguem obter o sucesso de não trocar os ingredientes da refeição, no dia seguinte, a conta chega: eles mal conseguem sair da cama. É muita ação, muito problema, muitos detalhes em um curto espaço de tempo, muitas pessoas falando ao mesmo tempo… A atenção é tamanha que a gente não percebe o quanto está se cansando, só no dia seguinte!

O pior é que ninguém nos entende. Quem vê um sobrevivente de AVC alegre e conversando com a família numa mesa de jantar, não tem ideia do quanto o cérebro dele está se esforçando para aguentar tanto estímulo. Não que a gente não deva se divertir. Longe disso, o que mais merecemos são momentos de alegria. Sobretudo, é extremamente difícil lidar com as férias das terapias e os desafios de dezembro. Sem dúvidas, é uma época bastante desafiadora.

Sair de casa com uma deficiência adquirida é bem mais complicado no fim de ano. Com o estresse coletivo, as pessoas se tornam mais apressadas e mais mal-educadas. A cada saída na rua, é preciso se reequilibrar diante de esbarros e empurrões. E como a gente ainda tem a cabeça de um corpo sem deficiência, ainda é difícil se adaptar ao ir e vir tumultuoso das grandes cidades. E assim, atrapalhados e inocentes, acabamos ouvindo de desconhecidos aquelas frases clássicas do capacitismo, como de que estamos atrapalhando o caminho ou que nem deveríamos ter saído de casa. Pois é, justamente numa época em que se houve falar tanto de humanidade, a gentileza ainda faz muita falta.

Outra coisa que precisamos trabalhar, e isso também requer tempo, é essa história de fazer lista para o ano seguinte. Se antes do acidente eu me empolgava, depois dele meus desejos ficaram curtos: basicamente me recuperar e adaptar ainda mais para ter autonomia, e quem sabe, ter mais disposição no fim de 2023.

É engraçado que, apesar de apreciar as festas do fim de ano, elas perderam um pouco o significado de renascimento em minha segunda vida. Parece que tal percepção foi para o início de setembro, em que comemoramos a independência. Neste feriado calmo e aparentemente sem graça é quando internamente comemoro as minhas conquistas e faço planos para o futuro. Sim, altas mudanças de perspectivas e significações após a minha volta do além. Até o calendário já não é mais o mesmo.

Apesar do dia Sete de Setembro ter se tornado o meu Natal particular, as datas de fim de ano continuam as mesmas para todo o resto do mundo, e a correria, a boa comida e as ótimas companhias também. É quando muitas pessoas se reencontram e as informações se entrelaçam e se confundem. Todo esse excesso de informação reflete em meus neurônios, que organizam suas conexões mentais de forma desorganizada, como um velho pisca pisca de uma árvore de Natal que, mesmo com algumas lâmpadas queimadas, insiste em continuar a brilhar. É isso que desejo para o próximo ano: que todos os cérebros machucados como o meu continuem a brilhar!

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