O poder do desmiolo

Depois do AVC, um novo manual do ser humano se abriu para mim

Ter um cérebro lesionado me faz pensar diferente. Além de ter tido que me adaptar a uma deficiência adquirida, a minha lesão me abriu novas portas sensoriais, cognitivas e humanitárias. É o que costumo chamar de: o poder do desmiolo.

Do nada. É assim que começou a minha segunda vida. De repente me vi imóvel, olhando para o teto e fazendo uma gestão de crise mental: o que foi e o que ainda tinha do meu corpo, dos meus sonhos, das minhas ambições e do que até então considerava vida. Era quase como se eu tivesse voltado a ser um bebê: via as pessoas sempre debaixo, (por estar deitada), usava fraldas e balbuciava palavras, às vezes identificáveis. Juro que até pensei que tinha reencarnado! Porém, não se tratava de uma nova vida em folha, mas uma nova vida: diferente e machucada.

O começo de ambas foi similar, confesso. Nos dois inícios fiquei totalmente vulnerável e dependente. Com o tempo, percebi que ainda tinha algum movimento, muito difícil de ser realizado, porém libertador. A sensação que tive quando me rolei sozinha no leito foi única, assim como a primeira vez que fiquei de pé. É uma mistura de alegria e tristeza tão grande que a gente não sabe se está rindo ou está chorando.

Essas vitórias são amargas porque tive que reaprender todas as pequenas coisas, o que me transbordou altas doses de impaciência e instabilidade. Muita informação para a cabeça, não é nada fácil. O medo se tornou um fiel companheiro, assim como a vergonha de sempre precisar da ajuda dos outros. Mesmo sabendo que são poucos aqueles que tem a chance de recomeçar depois de um AVC, acredite, tal processo é muito complicado. É a luta no luto!

À medida que fui recuperando a minha independência, foi preciso impor limites aos poucos que me rodeavam. Este período foi bem complexo (ainda está sendo), porque é difícil saber onde se encaixa a linha tênue entre o eu e o outro depois do AVC. É tudo tão misturado, que, no início, considerava “meu” somente os delírios e alguns pensamentos. Todo o resto do mundo era pertencido ao outro. Talvez por isso tenha me tornado mais introspectiva depois do acidente, buscava desesperadamente a minha individualidade.

Com os pensamentos borbulhando, em total contraste com a minha deficiência adquirida, precisei aguçar as minhas percepções e estar atenta a todos os detalhes a minha volta por simples questão de sobrevivência: atravessar uma rua, pegar o pedido certo, levar o garfo até a boca. Tudo exigia muito, tanto do meu corpo como da noção do outro.

Foi assim que tudo começou. Na ânsia em me adaptar, percebi que além das aparências, as pessoas se caracterizam por seus movimentos, ora individuais, ora coletivos. Pessoas influenciáveis possuem os mesmos contornos de seus líderes, porém, na ausência deles, voltam a se comportar como antes. Relações de poder também passaram a ser extremamente visíveis aos meus olhos, infelizmente. Um novo manual do ser humano se abriu para mim, com uma técnica muito diferente daquele das aulas de biologia. Tudo graças ao meu cérebro machucado.

Apesar de não ser neurologista, formulei algumas explicações para este estranho fenômeno. Em primeiro lugar: o cérebro lesionado é altamente sensível. Ele passa pelas mesmas alegrias e “perrengues” de um cérebro normal, porém com muito mais intensidade. O segundo motivo seria o estímulo. Estimulamos muitos os neurônios que nos restaram, e como o cérebro é um só, ele estimula todas as suas partes ao mesmo numa diária “academia neurológica”.

Assim, muitos sobreviventes se tornam ainda melhores em atividades que já eram bons, mesmo tendo uma parte do corpo lesionada. (Sério, antes eu escrevia bem, mas não assim). E devido a uma ignorância absurda da sociedade somos constantemente subjugados (tanto em novos relacionamentos como no mercado de trabalho) depois do AVC. Assim como todo preconceito, o capacitismo não faz sentido.

Esse incrível aumento de percepção não aconteceu só comigo, descobri que todo AVCista a tem em maior ou menor intensidade. Comecei a perceber essa mesma tendência nos comportamentos dos outros membros da minha comunidade. Todos nós percebemos os sinais que as pessoas dão. Até o mais contido ser humano não consegue esconder totalmente os seus sentimentos por meio de palavras, ações e contenções de respiração. Sutilezas assim podem ser imperceptíveis para um cérebro inteiro, mas não para um machucado. É a lei da selva, com o corpo em desvantagem, usamos nossas intuições ao nosso favor. E elas raramente falham.

Outro fator interessante é a empatia. Apesar das diferenças individuais, é impressionante o nível de acolhimento dentro dos grupos de apoio. Não digo que não haja discussões, isso sempre haverá, porém é em um grau mais moderado que o mundo aí fora. Como tendemos a ser mais maduros depois de uma experiência tão traumática, não vemos tanto quem pensa diferente como inimigo.

Muito pelo contrário, mesmo estando em diferentes níveis de reabilitação pós-AVC, há uma tendência muito forte em escutar o outro, tanto que quando um cai, outro o levanta, sem impor condições ou pedir nada em troca. Dizem que a empatia é um sentimento complexo e transformador, naturalmente presente em cérebros altamente habilidosos e… Lesionados. Tudo porque se o órgão ficou diferente, consequentemente pensamos diferente. Passamos a ver tudo com outros olhos.

Chamo todo esse excepcional e diferente funcionamento sensorial, cognitivo e emocional de poder do desmiolo. Ele está presente em toda pessoa com o lesão encefálica adquirida. E por isso é tão difícil se adaptar a imensa quantidade de informações no primeiro ano de AVC. Além de o corpo estar diferente, todo detalhe do mundo externo chega ao nosso aumentados. É difícil se acostumar.

Um outro potencial do desmiolo é o senso de união. Nossa extensa capacidade de nos conectarmos é tamanha ao ponto de nos considerarmos uma grande família, que unida pode conseguir tudo. No último dia 29 de outubro: o dia mundial de combate ao AVC, quase quebramos a internet do nosso mundo. Neste dia, sobreviventes do mundo inteiro contaram suas histórias, divulgaram os sinais e exigiram mais respeito e direitos por uma simples razão: não queremos que mais pessoas sofram o que sofremos diariamente. E se isso acontecer, que elas tenham as oportunidades que não tivemos ao ponto de retornarem com dignidade ao mundo que um dia pertencemos. Também queremos mais respeito e dignidade para aproximar esses dois mundos (o nosso e o de vocês). Afinal, vivemos fisicamente só em um, não é mesmo?

Sabe de uma coisa? Acho que iremos conquistar este objetivo apesar de ele ser considerado impossível para muitos. Somos sobreviventes de AVC, lidar com o impossível faz parte do nosso dia a dia. Podemos não ter mais a força física de antes, mas adquirimos o poder de lutar pelo que acreditamos: desde um simples caminhar até uma mudança efetiva na sociedade. Temos um potente cérebro machucado, e com ele salvaremos vidas antes, durante e após o AVC. Somos poderosos e o poder do desmiolo ainda vai dominar o mundo! Você vai ver!

Principais sinais do AVC: sorriso torto, dificuldade de falar ou compreender, falta de equilíbrio e força de um lado do corpo e dor de cabeça subida e muito forte. Leve a pessoa para o hospital urgentemente.

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