O Labirinto

Existe um monstro dentro de cada um de nós. E, apesar de ele ser individual, todos temos um medo em comum:nos perdermos dentro dele

Na Grécia Antiga, especificamente na cidade de Tebas, todos tinham medo de um monstro com corpo de homem e cabeça de touro que devorava pessoas: o terrível Minotauro. Derivado de uma encrenca do Rei Midas com um dos deuses do Olimpo, esse monstro estava aprisionado em um enorme labirinto, e de sete em sete anos, ele era alimentado por meio do sacrifício de catorze jovens (sete moças e sete rapazes) que eram obrigados a entrar neste covil e de lá nunca saíam. No dia em que nós sofremos um AVC, passamos por uma experiência semelhante. Neste dia entramos no labirinto.

É difícil explicar o que acontece, parece que, de repente, tudo muda de lugar: a rotina, o trabalho e as pessoas. Tudo fica complicado e sem nexo, até o raciocínio entra em devaneio. O dia a dia se transforma em uma série de corredores entrecruzados por incertezas e terapias que nos demandam tanto que fica impossível acreditar que exista alguma saída. E para piorar, cada dia que passa encontramos mais um obstáculo: uma sequela que estava lá escondida e que de repente emergiu como um enorme muro de pedras no nosso caminho. É doloroso acreditar que agora aquela simples ação não existe mais, é apenas uma lembrança do passado, e a única chance de readquiri-la é trilhar um atalho, até então desconhecido.

O pior de descobrir uma nova sequela de lesão cerebral não é ela em si, mas a certeza que a partir dela surgirão outros desafios. É uma luta sem fim. Primeiro, você não pode se mexer. Daí, quando se mexe, descobre que nunca mais vai andar com a mesma habilidade. No começo, você não mexe uma das mãos, e quando finalmente a movimenta, descobre que ela sempre será espástica.

A sensação com os nossos pensamentos é pior. Logo após acordarmos com uma lesão na cabeça, parecem até que os neurônios se comunicam por meio de uma massa de geleia, de tão escorregadio que é tentar encontrar uma lógica. Com o tempo, até temos uma sensação de que tudo está se ajeitando, mas é só passar por alguma instabilidade emocional que somos enviados de volta para o hospital… É cansativo ser paciente neurológico, só quem vive isso sabe.

E para completar (a cereja do bolo) tem aquela dor neuropática insistente que sempre se agrava com o frio. O inverno é a estação mais difícil no labirinto do AVC porque o gelo volta a fechar os caminhos recém-abertos por meses de tratamento. Na reabilitação neurológica, para todo degrau acima, existe um outro abaixo. A gente sabe, e exatamente por isso não reclamamos à toa.

Contudo, não é o sufoco de estar nesse labirinto que mais nos apavora, embora sempre exista a tendência de nos perdermos nele e andarmos em círculos, revivendo diariamente o trauma sofrido pelo AVC. (Esta prática de reviver dores é bem comum em seres humanos, e sendo desta espécie, também estamos suscetíveis a tal comportamento. E ainda assim somos julgados por tê-lo.). Um dos maiores medos de todo AVCista é de se encontrar cara a cara com o tal do Minotauro e ele perguntar: “E aí? O que restou da sua vida após essa lesão cerebral?”

Como toda boa história tem uma reviravolta, o labirinto de Tebas (aquele lá da Grécia) estava com os seus dias contados. Um jovem guerreiro chamado Teseu bolou um plano com sua amada Ariadne: ele entraria no labirinto com um novelo de fios de ouro cuja ponta seria segurada por ela no lado de fora. Assim, ele desenrolaria o novelo pelo trajeto e, depois de matar o mostro, conseguiria sair do local pelo mesmo caminho que entrou, seguindo o rastro demarcado pela linha dourada. Dito e feito. Ao contrário de João e Maria, nosso herói conseguiu voltar para casa e receber todas as glórias por ter livrado uma cidade inteira do terrível mostro.

Infelizmente não temos um Teseu para nos salvar do labirinto do AVC. Aqui cada um de nós é o seu próprio Teseu (já que de algum modo, todos somos heróis de nós mesmos). A recepção do mundo diante dos nossos feitos também é bem menos calorosa. Uma outra grande injustiça! Na verdade, além de não podermos contar com o valoroso Teseu, nosso labirinto não tem uma saída, já que entramos nele por um trajeto de neurônios mortos, impossibilitando qualquer retorno. Não há saída para uma lesão cerebral, nem como matar o medo do futuro. A única saída é enfrentá-los e aceitá-los. Diariamente.

Aos poucos, vamos nos acostumando com as intercorrências e construindo o nosso novelo dourado da neuroplasticidade. Porém, não se engane, apesar das aparentes melhoras, tem dias em que nos perdemos feio e temos que, de algum modo, encontrar um novo caminho para realizar algo, e até mesmo, inventar um. E como isso acontece!

Um cérebro machucado é muito criativo e intuitivo, capaz de feitos inimagináveis! Só que esses deslumbres não acontecem da noite para o dia. Antes de essas evoluções acontecerem, passamos longas noites desesperados dentro desse labirinto neurológico até termos fios dourados o suficiente para iluminarmos alguma trilha. E, a ciência que me perdoe, mas esse novelo não é estruturado diretamente por ela, mas pela fé. Depois que entrei no mundo do AVC passei a ver como a força da fé é capaz de atos considerados impossíveis. Fé em Deus, fé em um determinado tratamento, fé em si mesmo. É de fé que é feita a luz de nosso novelo de ouro.

A todo momento chegam novos participantes em nosso labirinto, e isso é uma das coisas mais tristes desse horrendo jogo. É importante salientar que nós (que já moramos nele) apenas encontramos aqueles que sobreviveram na entrada, então acabamos não tendo noção de quantos foram sacrificados durante essa travessia. Só sabemos que somos a minoria. E tem gente tão jovem nessa jogada, que entrou nesse emaranhado de neurônios com oito, treze, dezessete anos… Tem até casos de pessoas que chegaram aqui antes mesmo de nascer. (Meu Deus! Como é que elas vieram parar aqui!?).

Quem não teve AVC deve ficar chocado com essas histórias, já que por aqui também ficamos. Infelizmente todas elas são verdadeiras. A diferença do nosso olhar para aqueles que estão de fora é que acreditamos intensamente no poder desses pequenos. Temos total certeza de que o futuro deles será grandioso, porque a própria vida deles já mostra isso.

Não há sentimento de piedade no labirinto do AVC, aqui chegamos individuais e nos tornamos coletivo. Estamos sempre juntos na coragem e na empatia. Temos consciência da existência do Minotauro e não há sequer um dia em que não pensamos nele. Não tem como ser diferente. Porém, estamos vivos e enfrentar, aprender e continuar faz parte desse processo. Viver é desbravar labirintos.

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