O bolsonarismo venceu

A vitória da extrema-direita não é um acontecimento inusitado. Ela vem sendo gestada e preparada desde, pelo menos, 2018

Como todo acontecimento complexo, não há explicação única para o que vimos no domingo.

O campo progressista e democrático se empolgou demais com a possibilidade de uma vitória de Lula no 1º turno? Pode ser. Subestimamos, mais uma vez, o poder das redes sociais e a onda de desinformação e mentiras que circula nos grotões dos grupos de WhatsApp e no Telegram? Provavelmente.

As pesquisas eleitorais foram incapazes de captar as oscilações e a heterogeneidade dos eleitores? As metodologias de pesquisa estão defasadas? O auxílio emergencial influenciou os votos? Os pastores e os milicianos aterrorizaram e ameaçaram eleitores nos templos e periferias? O antipetismo ainda é um sentimento forte o bastante, notadamente entre a classe média?

Sim, é verdade. Mas mesmo isso e mais um pouco são insuficientes para entendermos os resultados das urnas agora, parece, finalmente confiáveis.

Mas há dado inegável: o bolsonarismo é o grande vitorioso das eleições. Não Bolsonaro, necessariamente, que precisará se esforçar ainda um pouco mais se não quiser trocar o Palácio do Planalto por alguma cela em Bangu, mas o bolsonarismo.

A vitória eleitoral foi acachapante, repetindo o que já vimos há dois anos, nas eleições municipais, quando os partidos do Centrão, DEM, PP e PSD, foram os que mais cresceram em número de prefeituras conquistadas.

Na desse ano, o PL elegeu a maior bancada federal, com 99 parlamentares. Nossas pequenas vitórias, como a eleição de Carol Dartora, vereadora em Curitiba, as primeiras duas deputadas trans e uma ainda pequena representação indígena, mal fazem cócegas no número de policiais militares eleitos: são 34, contra 28 nas últimas eleições.

Descontados os muitos candidatos que usam o nome de Deus em vão, e eles são uma legião, 28 parlamentares eleitos, federais e estaduais, são pastores. Dois são filhos de R.R. Soares, aliado de Bolsonaro, e há um que se apresenta também como militar: o Pastor Sargento Isidoro, eleito pelo Avante da Bahia. Apenas o pastor Henrique Vieira, do PSOL carioca, é de esquerda.

E o que dizer de Ricardo Salles, o ex-ministro que sugeriu aproveitar uma tragédia sanitária, a pandemia, para “ir passando a boiada” e afrouxar as regras de preservação ambiental? E de Pazuello, o general titular do Ministério da Saúde no pior momento da pandemia, responsável direto pela morte de milhares de pessoas, privadas de oxigênio e de vacinas? Ambos eleitos, o primeiro, por São Paulo; Pazuello, o segundo mais votado para representar o Rio de Janeiro na Câmara dos Deputados a partir do próximo ano.

Não apesar, mas justamente

A cereja do bolo: apesar do legado nefasto de quatro anos de extrema-direita, que transformou as milícias em um modo de governo, Bolsonaro obteve 43,2% dos votos.

Bolsonaro mentiu e disseminou mentiras; agrediu minorias; atacou a democracia; incitou a violência contra opositores, especialmente a esquerda; criminalizou movimentos sociais; favoreceu grileiros, garimpeiros e seus aliados no agronegócio incendiando florestas; transformou o país em um pária internacional; aparelhou o Estado; fez terra arrasada da educação e da cultura; o Brasil voltou ao Mapa da Fome e milhares vivem na insegurança, na precariedade e no desemprego; e pelo menos metade das quase 700 mil mortes por covid-19 poderiam ter sido evitadas, não fosse a irresponsabilidade criminosa e genocida de um governo corrupto, que retirou dinheiro da saúde e da educação para financiar o apoio do Centrão com o “orçamento secreto”.

Ainda assim e apesar disso, mais de 51 milhões de eleitores o querem reeleito. Pode-se argumentar, com razão, que parte desse contingente foram votos de ocasião. No entanto, me parece inegável que há uma fração expressiva que vota em Bolsonaro não por acreditar realmente que ele é honesto e fez um governo sem corrupção. Mas porque se alinha, moral e ideologicamente, a ele.

Quer dizer, Bolsonaro não obteve uma votação expressiva apesar de seus vínculos escusos com as milícias, de seus preconceitos, de seu autoritarismo e de seu profundo desprezo pela vida, mas justamente por eles.

É nessa identificação que reside sua potência. Mesmo que perca as eleições no próximo dia 30, Bolsonaro sai do pleito fortalecido o suficiente para seguir liderando um movimento já suficientemente enraizado na política brasileira, um divisor de águas.

Se há até poucos anos a extrema-direita praticamente inexistia como força política, o bolsonarismo mudou isso, ao abrir a caixa de Pandora de um “Brasil profundo” que já não se envergonha da violência, física e simbólica, de que é portador. E a enxurrada de preconceitos e de ódio despejados desde domingo contra o Nordeste e os nordestinos é só mais uma amostra dessa truculência.

Sem surpresas, sem democracia

Na edição de segunda, a Folha descobriu uma antropóloga que descobriu que o bolsonarismo é um fenômeno político maior que Bolsonaro. Parece que no Twitter também chegaram a essa conclusão. Não sei exatamente onde esse povo estava nos últimos anos, mas se lessem mais o Plural (desculpem o jabá), não estariam tão surpresos.

A vitória esmagadora da extrema-direita não é um acontecimento inusitado. Ela vem sendo gestada e preparada desde, pelo menos, 2018, se aproveitando das brechas de uma democracia precária como a nossa.

Sem uma cultura democrática capaz de solidificar a percepção da política como gestão das diferenças, o bolsonarismo opôs, ao débil movimento de aperfeiçoamento democrático, a objeção de grupos que se sentem ameaçados pela mera possibilidade de uma sociedade, além de mais aberta e plural, menos desigual.

Ele é, nesse sentido, uma reação raivosa, violenta e autoritária aos frágeis processos de mudança vividos pela sociedade brasileira nas últimas décadas, mas nunca consolidados, em parte, porque mesmo os governos democráticos nunca puderam, ou nunca pretenderam efetivamente, consolidá-los.

Bolsonaro não iniciou esse movimento; teve o senso de oportunidade de perceber a direção que ele tomava, e chamou para si o papel de o encarnar, de lhe dar um corpo e um nome. Eleito, aparelhou o Estado e, por meio dele, potencializa uma liderança messiânica, espécie de profeta do caos, em um caso emblemático de um presidente que gere o sistema, mas se apresenta, e é visto, como antissistêmico.

Os eleitores de Bolsonaro não estão sendo enganados pelas fake news, nem iludidos pelo falso moralismo e o patriotismo rastaquera de seu “mito”. Eles sabem que as escolas não obrigarão as crianças a usarem banheiros unissex – a mamadeira de piroca da vez – e que nenhuma igreja será fechada em uma eventual vitória de Lula.

Mas é preciso se apegar e disseminar as mentiras mais absurdas, porque elas servem para encobrir a terrível verdade: ambos, Bolsonaro e o bolsonarismo, são o resultado de um desejo, o desejo das massas pelo fascismo, pelo espetáculo e pela violência do fascismo, como alertou Reich ao se referir aos alemães que testemunharam a ascensão do nazismo.

Eles não foram enganados porque, em certo momento e sob determinadas circunstâncias, o nazismo foi exatamente o que elas, as massas alemãs, desejaram. A mais nova versão do fascismo, o bolsonarismo cumpre, no Brasil, papel similar. Os que votaram em Bolsonaro, nos governadores e deputados alinhados ideologicamente a ele, desejam exatamente aquilo que ele e o bolsonarismo têm a lhes oferecer. Não é ignorância. É conivência e cumplicidade.

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

À minha mãe

Aos 50 anos, a vida teve a ousadia de colocar um tumor no lugar onde minha mãe gerou seus dois filhos. Mas ela vai vencer

Leia mais »

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima