O clube da Dona LEA

Aqui e em todo lugar no mundo existe um clube seleto, mas no qual ninguém quer entrar. Entramos escolhidos pelo acaso ou azar: morremos cedo e voltamos diferente. Bem-vindo ao clube da Dona LEA (Lesão Encefálica Adquirida).

Ninguém quer morrer cedo, nem aqueles que dizem desprezar a vida. No fundo, todo mundo tem certo receio de enfrentar a morte e, talvez por isso, tantos fogem do envelhecimento sem perceber que ele é um grande mérito da vida. Quando passamos por uma lesão neurológica, perdemos muito do que considerávamos vida e passamos a viver uma realidade paralela. Não apenas pelo trauma permanente da deficiência adquirida, mas porque pensamos e sentimos a vida diferente depois de ter um cérebro machucado.

Ter uma lesão encefálica adquirida (LEA) dói em todos os sentidos, pois não somos os mesmos, apesar de sermos a mesma pessoa. O dia a dia fica mais lento, difícil e repleto de dores neuropáticas. Ficamos velhos em corpos novos, agora desajeitados e pouco esbeltos. Além disso, é difícil se sentir incluído na família, na roda de amigos e no salão da esquina. Parece que agora sabemos menos da vida e demais da morte. É esquisito.

Absolutamente para tudo existe um fim, embora todas as fantasias insistam em dizer o contrário, a gente sabe que um dia tudo se finará. Hoje acho isso até bonito. Ao perder para sempre uma parte do meu cérebro, me deparei com o luto desse acontecimento e uma vida pós-AVC bem inusitada, para lá de todos os costumes. A minha relação com o tempo, por exemplo, mudou. Como a percepção dos dias é mais curto, me transformei numa maratonista para tentar cumprir as tarefas diárias.

Além disso, minhas percepções mudaram ao interagir com o mundo. Não sou a única, é razoavelmente comum quem tem lesão encefálica escutar zumbidos, enxergar sombras se mexerem e ouvir vozes. Isso poderia ser plausível em uma sessão espiritual, mas tudo é resultado das falhas de conexões neuronais: a falta de equilíbrio causa a sensação de zumbido, a falha visual produz sombras, e os nossos pensamentos precisam ser tão meticulosamente estruturados, ao ponto de realmente os escutarmos. Tudo isso é comum na vida de muita gente que teve os miolos revirados, que nomeei carinhosamente de integrantes do clube da Dona LEA.

Apesar das diferentes lesões existentes no encéfalo, todas as nossas percepções e sentimentos são muitos similares, talvez por isso nos acolhemos tanto. Enquanto para os seres de miolos cheios somos preguiçosos e reclamões, sabemos que a realidade é que agora somos verdadeiramente lerdos, por dentro e por fora. Qualquer estímulo se torna intenso. Uma reunião com cinco amigos é uma rave, um shopping, uma Disney e um jogo de futebol, o quinto dos infernos. Tudo é tão sobrecarregado que demoramos mais para nos focar em cada tarefa e não nos esquecer do que estávamos fazendo. O humor varia incontrolavelmente: ou estamos muitos felizes, ou em total depressão: não existe mais o meio termo. Toda essa instabilidade nos causa imenso sofrimento. No fundo, sabemos que reagirmos exageradamente. Porém, nada disso é nossa culpa, mas da impiedosa LEA.

A Lesão Encefálica Adquirida engloba todos aqueles que tiveram seu cérebro modificado por um trauma, ou seja, todos que literalmente possuem neurônios a menos e agora vão cedo para cama e precisam descansar várias vezes ao dia. Muitos dos que estão nesse grupo, entraram nele pelo TCE (trauma crânio encefálico) que surge por um acidente de carro, uma bala perdida ou uma forte queda no momento e no lugar errado. A maioria dos que sobrevivem a um TCE são jovens, fazendo com que a vida deles tenha menos lembrança de antes do acidente do que depois dele. Como já se acostumaram com a nova realidade, geralmente são os anciões do nosso clube, apesar da pouca idade.

Esta ideia de antes e depois é bem presente em quem adquiriu uma lesão na cabeça. As comparações são constantes, interna e externamente, o que prejudica muito a nossa adaptação. Para fugirmos dela, e isso ninguém conta, fingimos estarmos bem quando não estamos, principalmente diante de desconhecidos. Tudo fake! Apenas para durante um segundinho termos o privilégio de sermos tratados como antes. Que saudade!

Esse processo não me era tão estranho quando ainda me lembrava de como eu era. Naquele tempo antes de 2019 em que nem imaginava que o clube existia, quando eu era considerada “normal”. Então, principalmente no meu primeiro ano de lesão, quando a deficiência motora dava uma disfarçada, negava a sua evidência, como se toda aquela história de acidente tivesse sido apenas um pesadelo. A vida era pesada demais quando negava o AVC. Se eu demorasse para entender uma piada, chorava internamente quando o meu interlocutor confundia a demora da minha resposta com falta de inteligência. Mal sabia ele que o caminho neural da compreensão havia se transformado em uma trilha na minha cabeça. Agora era muito mais difícil de chegar lá.

Essas coisas podem parecer imperceptíveis para a maioria das pessoas, menos para quem pertence ao nosso clube restrito. Nos reconhecemos pelas ruas, nos perdendo ou não pelo caminho, dentre as conversas e atalhos de nossas estratégias mentais. Somos um clube bem seleto, sabemos bem com quem e com o que estamos lidando. Compreendemos que quando saímos da nossa zona de conforto, nossas sequelas se intensificam e ficamos desequilibrados, com dificuldade na fala e na agilidade. Se somos confundidos com bêbados, gagos e inseguros pelos outros, entre nós nos acolhemos. A primeira aceitação que recebi foi a do clube da Dona LEA. Foi por meio dele que entendi que, apesar de tudo, ainda estava viva.

Apesar de tantas diferenças, algumas sutis, outras nem tanto, foi por meio de outros sobreviventes que aceitei o meu destino, e principalmente a diferente vida que tive depois dos meus AVCs. Sei que, se hoje vivo uma vida paralela, não sou a única a estar neste lado, embora lute constantemente para que menos pessoas passem pelo que estou passando.

Sentir as coisas demais quase sempre é pesado, mas também me presenteou com propósitos. Começou pelo de querer andar, depois falar corretamente o português e se expandiu para ser independente. Há uma resiliência incrível em cada membro do clube do qual eu participo. Algo intrínseco a todo ser humano, mas que para nós deve estar mais aflorado. Tudo para nós é realmente demasiado.

Por pior que seja as circunstâncias, todos nós, participantes ou não desse clube, queremos estar vivos da melhor maneira que conseguirmos. Mas, acredito que dentre os vários medos dos sobreviventes de LEA está o de não ter tempo suficiente para fazer o que se tem vontade. Afinal, todos nós morremos cedo e sabemos como a vida é curta. Todavia, não somos os únicos que sabemos disso. Não é preciso morrer para viver.

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