O buraco da alma

Um pedaço do meu cérebro, do meu corpo, foi embora sem se despedir. Restou o luto

O furo no cérebro. Foi isso que eu vi numa tomografia realizada nove meses após o AVC. A minha lesão se transformou num buraco escuro na tomografia. O tecido se deteriorou e o que restou foi um buraco preenchido pelo líquor cerebral. Um espaço vazio, sem miolos. Sou oficialmente desmiolada.

Segundo a neurologista, este pedaço que falta é o responsável pela motoridade e sensibilidade da parte esquerda do meu corpo. Hemiparesia que se fala. É o nome médico para paralisia branda da metade do meu corpo. Porém estou escrevendo este texto segurando o celular com a mão esquerda. Como pode? Milagre? Milagre do organismo chamado neuroplasticidade.

Outros neurônios pegaram para si a função dos que morreram, dos que foram para o além. Tudo isso porque foram incentivados na fisioterapia. É tipo uma família – quando alguém importante morre, todos vão se realinhando aos poucos para dar conta das contas do falecido. E o cérebro também chora, ele também está de luto. Por isso é comum avecistas terem crises súbitas de choro.

Hoje chorei de luto, de saudades da parte do meu corpo que foi embora em menos de um segundo, sem se despedir. Sem dizer adeus. Eu choro em cada tomografia como se estivesse no meu velório. Pelo menos no velório de uma parte de mim. É dramático mesmo, e irritante ao mesmo tempo. Porque já faz alguns meses, poxa, não era para eu estar melhor? Bah! Luto é luto. Cada um tem o seu tempo.

Um dia essas fotos não vão mais me abalar. Mas esse dia não é hoje. Ainda é recente. Eles (os neurônios) se foram em torno de um ano e fazem muita falta. Um dia eu e o meu cérebro (costumo brincar que agora somos dois: eu sou o Pink, ele é o cérebro) entenderemos que essa parte se mudou para uma chácara ou está num lugar melhor e seguiremos adiante, como todas as pessoas que ainda estão vivas. E eu sou uma delas.

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