Feliz ano velho

Toda virada de ano é uma mistura de emoções: esperança, ansiedade e quilos de frustrações num grande prato de sobremesa. A vida de ninguém muda com data marcada em calendário, apesar de existirem grandes mudanças de um minuto para o outro

Meu ano mudou em meados de um mês de maio. Eu não tinha planos para isso: não preparei roupa, não comprei champanhe, e não fiz listinha. Porém, passei de camisola amarela, reuni amigos que nem se conheciam e parti para uma longa viagem dentro de mim mesma. Não foi uma festa, mas, definitivamente, foi uma virada. Dormi inteira e acordei diferente em outro corpo. Renasci desmiolada.

Já faz quase quatro anos em que acordei do meu primeiro coma no hospital, e antes disso acontecer, tomei um porre de morfina para aguentar a dor de uma das cirurgias cerebrais que passei. Pode até parecer mentira, mas até hoje sou assombrada pelo meu primeiro coma. Isso porque me vi lá, meio que empacotada em um leito branco, cheia de tubos e com o olhar triste. Foi nesse dia que descobri que todos nós morremos tristes. Deve ser porque relaxamos demais o músculo da face e apresentamos um semblante cabisbaixo. Morremos tristes.

O estranho era que não me reconheci prontamente, porque, naquela época, achava que era um soldado francês de pés descalços e grandes chamado Jerôme. Obviamente, ele não tinha esse nome, inventei depois para ele. Mas, de certo modo, ele era meu companheiro de morte. Enquanto eu sentia a sua morte prematura num campo de batalha, ele me via morrendo num leito hospitalar. Nos ouvíamos o tempo todo, e acredito que este seja o motivo de eu voltar do AVC falando fragmentos em francês. Herança do meu amigo imaginário que trocou de lugar comigo várias vezes durante o meu primeiro ano de pós-AVC (a cada crise convulsiva ele reaparecia), para depois ir embora sem dizer adeus.

Jerôme me via com piedade quando eu estava no leito, porque me achava muito nova. “Uma menina que bateu a cabeça com força”, era como ele se referia a mim. E assim, me vendo de fora, com o olhar de um guerreiro sofrido e injustiçado, tive a grande virada na minha vida e fiquei infeliz. Tive aquela sensação de ressaca moral pós réveillon, em que a gente bebeu demais, falou demais e não fez absolutamente nada de útil.

Fui muito injusta comigo na minha primeira vida. E hoje digo: a pior das injustiças é aquela que a gente faz com nós mesmos. Esta sim, é quase imperdoável. Meu erro foi não entender quem eu era, não por falta de terapia, mas por tentar me adequar a um padrão impossível de conquistar sozinha. Sempre fui artista, sempre soube disso, mas me resignava a apenas assistir a arte dos outros nos museus. Não me achava capaz de uma profissão tão difícil e pouco reconhecida. Preferi a segurança de um emprego na minha área de atuação e sonhar com uma vida em que dependeria dos outros para ser feliz. Era tão mais fácil, e, de certo modo, não me sentiria sozinha. Ironia da vida. Justo eu, que morri sozinha e fui capaz de sobreviver me duplicando, tinha muito medo de ser solitária.

Mas ali, velando o meu sono numa cama de hospital, com os olhos fechados com uma fita transparente e entubada, percebi que tinha feito tudo errado, apesar de ter feito tudo certo. Às vezes o certo é o errado. Nem todo mundo aprende a escrever usando cartilha, ela é apenas um método inventado. No fundo a gente sabe o que é preciso para fazer de um ano novo uma vida nova. Às vezes depende só da gente, em outras (como no meu caso), tive um empurrãozinho do destino por meio da ruptura de um aneurisma e, consequentemente, um AVC hemorrágico.

Fiquei 21 dias na UTI, enfrentando traumáticos desafios. Nesse meio tempo, tive um grande encontro comigo mesma e com Jerôme, que de uma forma bem inexplicável, também se reencontrava. Gente que fica muito tempo em UTI tem grandes conversas consigo e com o mundo à sua volta. É meio sobrenatural, mesmo. A gente ouve vozes, enxerga luzes e tem grandes insights sobre a vida. Basicamente, todos os nossos problemas de antes se resumem em falta de coragem. Sim, isso foi mais triste do que me assistir morrendo: admitir que tudo que não deu certo foi por falta de coragem. Quel dommage!

Lembro que entre despertares de consciência, o médico me disse que eu não iria mais andar. Mas, uma voz disse para mim (na minha cabeça) que ele estava errado. E quando me levantaram pela primeira vez, desmaiei de dor e de tontura. Foi a primeira vez que percebi como eu sou alta. Para eu me manter em pé, precisava aguentar a dor até o nível oito. Se eu passasse para o nove, desmaiaria. Era preciso aguentar até o oito para voltar a andar. Huit!

Sou muito resistente à dor, então, tentava aguentar até ela chegar nesse nível para pedir para me colocarem na poltrona. Foi assim que aprendi o meu limite. Oito: um grande aprendizado. Até hoje diante das minhas grandes frustrações, fecho os olhos e penso em que nível aquilo está me doendo. Da última vez, foi sete. Meu limite é oito. Isso significa que posso seguir em frente. Conhecer seu próprio limite é tudo.

Também me lembro que, durante uma das visitas dos meus pais, a médica intensivista falou que o meu caso era grave, mas que eu estava me recuperando muito bem. E, possivelmente, sairia da UTI se não tivesse nenhuma complicação. No meu íntimo, eu sabia que essa complicação existiria. Estava certa. Veio um outro AVC que me colocou novamente na estaca zero da minha reabilitação. Não me surpreendi. Parece que a gente sempre sabe que nossos grandes medos acontecerão, né? Todo mundo é meio Márcia Sensitiva nesse aspecto. Mais um grande aprendizado que guardei na memória: a gente sempre sente.

Mesmo muito debilitada, senti que iria me recuperar, mas não tinha ideia de como o caminho iria ser difícil e cheio de surpresas. O retorno do movimento da mão foi uma delas. Como ela se aninhava rente ao meu peito, achava que desentortá-la seria muito difícil. Mas, tudo ficou mais fácil quando um menino paulistano, que tinha tido AVC também, começou a me enviar uns vídeos de reabilitação no membro superior. Eu ficava tão sem graça de não tentar fazer o exercício enviado por ele que, como boa aluna, segui suas instruções até que a mão foi se soltando. Neste caso, o intuitivo foi ele, que acreditou em mim mesmo não me conhecendo. Assim como Jerôme, este menino cruzou o meu caminho e tornou-se parte da minha história. Coisas da vida: nem tudo é só coisa ruim.

Todavia, a lição mais maravilhosa que tive no ano da minha virada é que, de todas as formas, eu estava lá comigo. Nunca me abandonei, e isso fez a diferença. Faz até hoje. Todo ano vai acontecer coisas boas e ruins, e a gente ainda vai estar lá com a gente. É claro que podemos nos conectar com Deus, personas ou gente de carne e osso que nunca vimos na vida. Mas, a gente não desiste da gente. Eu, pelo menos não desisto. E isso me transbordou de amor e coragem. No francês, “coragem” vem de “coração”. Para mim também. Aprendi com o meu amigo guerreiro.

Nem tudo são flores, admito. Apesar de ter me recuperado bem, ter me conectado comigo mesma e hoje ter até leitores (o sonho de todo escritor), definitivamente tudo isso não vale o preço de ter passado por tanta dor. Se eu pudesse, trocaria tudo para voltar no tempo e ter meu corpo de volta. Porém, procuro não me lamentar porque a vida é assim mesmo: uma mistura de experiências e emoções. Uma mistura de bom e ruim. É assim que a gente se transforma e faz acontecer a nossa grande virada. Feliz ano bom, ou como diz Jerôme Monté: bonne anné.

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