Estar sendo; ter sido

Não fazia sentido eu estar num mundo em que fazer coisas tão simples se tornou impossível. Tudo era difícil: desde continuar uma conversa até tomar banho

Toda transformação tem o antes e o depois. Na televisão essas comparações costumam ser vantajosas, o que nos programa para a ilusão. As reais transformações doem e ocorrem no hiato entre estar sendo e ter sido: o dilema de todo sobrevivente de AVC.

Definitivamente é bem mais fácil em um filme. Certo personagem sofre um acidente, fica em coma durante um breve momento e, de repente, volta. Todos o recebem bem, logo a situação fica esclarecida, ele se recupera e segue em frente. Na vida real tudo isso acontece de forma bem diferente, o processo de “cair a ficha” demora meses (anos, até) e readaptar-se à antiga vida de um novo jeito demanda muito mais esforço do que elaborar qualquer roteiro cinematográfico.

Tocar na linha tênue que separa a vida da morte e voltar para a cá é, no mínimo, traumático. Renascer dói, pois é um novo corpo e uma nova realidade. Voltar à vida depois dos meus acidentes cerebrais, embora tenha sido vitorioso, foi perturbador. Essa vida que vocês estão acostumados a levar é pesada, meu caros, literalmente pesada. Respirar exige, equilibrar-se é penoso e aguentar a futilidade das mídias também. Quem ainda não morreu não entende, mas quem já usufruiu de passeios no além, sabe que lá tudo é mais leve e fluido. Pelo menos foi para mim.

Meus primeiros dias após despertar do coma me passaram a impressão de estar numa vida paralela. Aquele hospital não fazia sentido, aqueles desconhecidos da equipe médica também não, e aquela história de AVC menos ainda. Demorei dias para entender que tudo não era um sonho, ou melhor dizendo, um pesadelo.

Voltar para casa e para uma nova rotina tão diferente da que estava acostumada era inconcebível. Não fazia sentido eu estar num mundo em que fazer coisas tão simples se tornou impossível. Tudo era difícil: desde continuar uma conversa até tomar banho. E o pior é que todas as dificuldades adicionais para cada ação eram invisíveis para todos, que só conseguiam assimilar minhas sequelas motoras e linguísticas: as mais evidentes. Contudo, hoje não os julgo. São poucos os que conseguem nos ver por dentro, já que nossas emoções são constantemente desvalorizadas. É preferível as escondermos a revelarmos.

Na minha “realidade paralela” pós-AVC havia um abismo entre o que eu gostaria de fazer e o que eu realmente poderia fazer. Coisas simples como sentar e me alimentar se tornaram complexas. Confesso que naquele primeiro momento tive saudades do coma, porque ele era simples e só meu. A nova vida era dos outros e eu estava em séria desvantagem. Como é que antes eu lidava com tudo aquilo de modo tão automático? Será que eu era uma heroína? Claro que não, eu só não tinha o cérebro machucado, e isso tornava as coisas muito mais simples.

Dizem que nascer dói (e como não lembro dessa parte da minha história, simplesmente acredito), mas posso afirmar que renascer é o contrário de prazeroso. Desse último, me lembro muito bem. Não há como parar de se comparar com vida anterior, porque todo mundo ao redor também te compara. Eles acham que ainda somos os mesmos, e ainda não somos. Há um árduo caminho para se reencontrar e não encontramos ele imediatamente após a alta hospitalar. Culpo os filmes por essa visão de insight automático, já que neles as personagens só continuam o enredo, não se modificam. E nós voltamos diferentes, com uma grande mala vazia (tanto no corpo como na alma), e para preenchê-la é necessário aprender tudo de novo. Ai, que preguiça!

A reabilitação é como se fosse a pré-escola da vida pós-AVC. Lá somos aparentemente aceitos e recebemos uma grande carga de promessas para o futuro. Algumas se concretizarão, outras não. Assim como na primeira vida, ninguém sabe qual será o nosso futuro. E o paciente (assim como qualquer ser em aprendizado) se esforça diariamente, já que a nossa tarefa é essa. Mas como nós somos adultos, não almejamos o futuro, mas o passado, especificamente a vida que tínhamos antes do AVC: com o mesmo corpo, o mesmo jeito de pensar, de andar. Exatamente tudo como era antes, sem tirar, nem pôr.

Nesse período de transição, vivemos numa espécie de meio termo: estamos vivos, mas debilitados, com dores, cansaços… Um novo bebê de oitenta anos. Toda essa situação não faz muito sentido, e ela nos causa uma grande raiva. Para quem nos julga ou nos chama de ingratos, só digo o seguinte: se fosse com você, também não seriam seus melhores dias, acredite. Para mim, o humor só melhorou quando eu comecei a conseguir fazer as coisas que queria, ter migalhas do meu passado de autonomia de volta ao meu presente. Lembro até hoje de conquistas como me vestir sozinha e segurar o xixi. Que vitórias, minha gente! Que vitórias!

Meus primeiros passos e realizações de simples desejos também foram inesquecíveis. Todos pequenos e, ao mesmo tempo, grandiosos. Mas com certeza tudo era diferente de quando tive essas conquistas pela primeira vez, e talvez por esse motivo, havia certa tristeza presente nelas. Afinal, não eram trajetos novos, o que me proporcionava identificar os empecilhos para completá-los: as roupas engatavam para entrar, as palavras travavam para sair e os neurônios não se entendiam do mesmo jeito para raciocinar. Para piorar, todo barulho irritava, toda luz incomodava, e esse acúmulo de sensações intensificavam as sequelas (as consequências da minha lesão adquirida).

Posso dizer que apenas senti que tinha sobrevivido a um desastre neurológico e estava voltando a viver à medida que fui readquirindo independência. Para quem tem um cérebro diferenciado, conseguir fazer o que se quer é ter a vida de volta, ou pelo menos, parte dela. Foi isso que me ajudou a seguir em frente e a olhar para todo o meu passado com mais carinho. Foi indo em busca de novos propósitos que fui preenchendo o meu caminho entre o “estar sendo” e o “ter sido” e, finalmente, dar continuidade à vida. Apesar das dores, das dificuldades e dos medos, hoje tenho consciência de que morri… E que continuo vivendo.

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