Não é polarização, sempre foi fascismo

Ao fazer uso das prerrogativas do seu cargo e colocar em descrédito as instituições democráticas, incluindo as eleições, Bolsonaro se apresenta, e a seu governo, como vítimas de uma conspiração contra a qual não há outro recurso que não a violência

O assassinato, no sábado (9), do dirigente petista Marcelo Arruda pelo bolsonarista Jorge José da Rocha Guaranho, em Foz do Iguaçu, é o mais grave dos episódios da escalada de violência promovida pelo bolsonarismo nesse ano eleitoral. Mas Arruda não é a primeira vítima fatal do bolsonarismo, e há razões de sobra para temermos que não seja a última.

Em outubro de 2018, no dia seguinte ao primeiro turno, o mestre capoeirista Romualdo Rosário da Costa, o Moa do Katendê, foi morto a facadas em um bar de Salvador, na Bahia, pelo também bolsonarista Paulo Sérgio Ferreira de Santana.

Na ocasião, o candidato Jair Bolsonaro optou pelo silêncio. Mas no domingo (10), se manifestou em suas redes sociais sobre o crime cometido pelo seu seguidor, e fez exatamente o que se espera de um covarde, desvencilhando-se de qualquer responsabilidade e abandonando à sorte um de seus cúmplices.

Na mesma declaração, no entanto, ao responsabilizar a esquerda pela violência, dá a senha para o que se tornaria, nas horas seguintes, a “versão oficial” do bolsonarismo nas redes sociais sobre o crime cometido por um dos seus.  

Ninguém em sã consciência esperava uma posição firme de repúdio ao assassinato. Não apenas porque ele não se importa, mas porque é um dos principais incentivadores da violência e não lhe interessa, politicamente, recuar. A violência crescente e um ambiente político fragilizado e caótico são parte dos planos de Bolsonaro e do bolsonarismo.

Milícias e fascismo

A percepção comum da ascensão dos fascismos na Europa do entre guerras se baseia em uma premissa perigosamente enganosa. Fala-se muito do totalitarismo e dos crimes de guerra, dos assassinatos em massa, dos campos de concentração nazistas, onde, principalmente, milhões de judeus foram exterminados.

Mas nada disso aconteceu por acaso, nem da noite para o dia. A emergência dos fascismos se fez ao longo de anos e, invariavelmente, teve na violência política interna uma de suas principais características.

Na Espanha, as falanges precederam o golpe fascista de Franco e a guerra civil que culminou com 500 mil mortes e uma das mais longas ditaduras da história europeia recente. Os falangistas promoveram a perseguição, a agressão e o assassinato de inimigos políticos, incluindo fuzilamentos em massa.

Antes da “marcha sobre Roma” e a nomeação de Mussolini ao cargo de Primeiro-Ministro, em 1922, tarefa análoga foi conferida aos Camisas Negras italianos. Eles atacavam sindicatos, jornais e movimentos políticos, espancavam e assassinavam sindicalistas, camponeses e líderes políticos contrários ao fascismo.

Um dos principais esteios políticos do Partido Nazista e de Hitler, a Sturmabteilung (“destacamento tempestade”), nunca chegou a ser um exército regular, sendo inclusive dissolvida com a consolidação do nazismo como regime de governo. Mas durante anos as temidas SA, um grupo civil armado que atuava à margem da lei e com a conivência silenciosa das autoridades, cumpriu o papel fundamental de disseminar o terror e a violência contra judeus, minorias e inimigos do nazismo.

Milícias atuando a favor de uma organização e de um projeto político de poder, cada uma dessas organizações foi, a seu modo, um prenúncio do que estava por vir. E não se trata aqui de teleologia. Não apenas nós, hoje, privilegiados pela distância temporal, sabemos disso. Muitos contemporâneos perceberam e denunciaram, em vão, as ameaças e o perigo do fascismo e o altíssimo custo da violência política.

Mussolini.

Elogio da violência

As similaridades com o Brasil e o bolsonarismo são perturbadoras. As declarações de Bolsonaro enaltecendo e estimulando a violência e o terror, incluindo o terror de Estado, sabemos, são muitas e antecedem sua eleição à presidência.

Ele já elogiou a ditadura e enalteceu um de seus principais torturadores, Brilhante Ustra, o “terror de Dilma Rousseff”. Na campanha de 2018, prometeu “metralhar a petralhada”, “acabar com todo ativismo” e mandar seus inimigos para a “ponta da praia”, local onde a ditadura desovava os cadáveres que produzia. Tomou posse prometendo perseguir e eliminar a esquerda da vida política do país.

Presidente, cercou-se de militares; defendeu e facilitou o acesso às armas; atacou instituições; aparelhou órgãos de controle e fiscalização; lançou uma sombra de dúvidas sobre o processo eleitoral; estimulou e participou de manifestações golpistas que pediam a volta da ditadura; insuflou a truculência policial, ensaiando tornar a Polícia Militar sua milícia particular.

No auge da pandemia, indiferente às quase 700 mil mortes, cavou ainda mais fundo o caos onde ancora seu projeto político e de poder.

E nunca, em nenhum momento, recuou no estímulo ao ódio e à violência. Em 2020 disse a seus seguidores que “a responsabilidade de todos vocês é enorme. Não dê chance para essa esquerda. Eles não merecem ser tratados como pessoas normais, como se quisessem o bem do Brasil, isso é mentira”.  

Em maio desse ano, em evento da Associação Paulista de Supermercados afirmou, sobre a frente ampla eleitoral em torno à candidatura do ex-presidente Lula: “é bom que um tiro só mata todo mundo ou uma granadinha só mata todo mundo”. Na sua live de 7 de julho, poucos dias antes do assassinato de Marcelo Arruda por um de seus seguidores, afirmou a seus apoiadores que “nós sabemos o que temos de fazer antes das eleições”.

Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Foto: Wilson Dias/Agência Brasil.

Discursos e ações

A responsabilidade de Bolsonaro pelo homicídio em Foz do Iguaçu, da qual tenta se desvencilhar, não reside em sua relação direta com o crime.

Ele, de fato, nunca mandou ninguém matar em seu nome. Mas não é preciso. A sobreposição de seus discursos e ações é o que incentiva a violência de seus cúmplices, cada vez mais convencidos de que lutam contra um inimigo perigoso a ser extirpado da vida pública, pelo bem do país.

Não apenas isso. Ao fazer uso das prerrogativas do seu cargo e colocar em descrédito as instituições democráticas, incluindo as eleições, Bolsonaro se apresenta, e a seu governo, como vítimas de uma conspiração contra a qual não há outro recurso possível que não a violência e o terror. Às milícias, digitais e físicas, cabe o trabalho sujo de transformar em ato as palavras e a vontade do seu líder.

É profundamente lamentável que, frente às ameaças mais que evidentes, parte expressiva da imprensa brasileira e de muitos de seus analistas políticos, ainda insistam na existência de uma “polarização política” – tese aliás, que repercute também em parte do eleitorado nas redes sociais –, tangenciando e minimizando, como vem fazendo desde 2018, pelo menos, os perigos do bolsonarismo.

Não há polarização quando um dos lados está armado e disposto à violência, ameaça adversários, promove atentados e ataques em manifestações públicas e, agora, também assassina opositores. Isso tem outros nomes: terror é um deles. Fascismo, outro.

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