Caixa preta

O que te resta quando, de repente, todas as suas estruturas vão para os ares? Se em um acidente aéreo, todas as informações de uma aeronave ficam na caixa-preta, como decifrar tal estrutura quando o desastre é na nossa cabeça?

Algo se arrasta. No palco limpo e amadeirado os pés descalços de Claudia entram em cena. Uma de suas mãos segura um fio condutor, uma espécie de medula que se prende a uma caixa preta, de papelão. O fio puxa a caixa, e ela, seu destino. É daí que vem o barulho. O corpo pequeno e delicado da artista compõe uma bonita cena, porém, o público, surpreso, se concentra em seu andar desalinhado e, aos poucos, descobre que aquele corpo tem algo diferente, que tem uma deficiência. Todavia, há muito mais do que isso perante os seus olhares, eles encaram uma performance ainda misteriosa, já que nem todas as formas de arte se revelam instantaneamente. Se fosse assim, não teria graça.

Os esverdeados olhos da artista encaram o público e o nada ao mesmo tempo, enquanto caminha e arrasta a caixa preta, que incrédula de seu mistério, range devagar, quase silenciosamente. Apesar disso, a caixa visivelmente pesa, tem algo importante em seu interior, e isso é revelado quando Claudia senta-se no chão e acolhe o objeto com preciosidade. Nenhum de nós sabe o que a caixa tem dentro, quiçá nem ela.

A caixa se abre, mas ninguém identifica o que tem dentro dela. Só sabemos que lá tudo está escuro. Para dar suporte ao conteúdo da caixa, Claudinha (apelido só para os íntimos) pega uma imensa moldura de madeira, antes entregue a um suporte centralizado. Incrível que, mesmo estando no meio do palco, ninguém reparava no suporte, tampouco na moldura. Mas agora ela se tornou pesada e enorme, ao ponto de quase engolir a cena. O que apenas não acontece porque a artista a segura com a força de seu braço incapacitado pelo AVC há catorze anos. Apesar de trêmulo e relutante, o braço é mais forte do que a imponente moldura, que apesar de ser vazia, esbanja imponência. Ela não necessita de recheio para se achar importante. E agora confronta a simples caixinha, que imóvel, se rende com o seu interior exposto. Pés esquerdos de sapatos são retirados junto com uma órtese. O antes, o durante e o depois de uma caminhada árdua, mas com simples e significativos passos.

Nossos pés mudam com o AVC. A fúria de uma lesão cerebral é tamanha que os nervos se contorcem e passam a doer nos invernos. Muitas vezes, órteses e muletas são necessários. Artifícios que, para alinhar, nos pesam e prendem. Nossos terríveis companheiros dos primeiros anos após o acidente, amados por nos cuidarem e odiados por serem os substitutos de nossos antigos sapatos.

No primeiro momento, calçados são meio inúteis para a nova vida. Como ficamos acamados ou sentados, eles apenas se tornam estéticos e depois, nos primeiros e últimos passos, são abandonados tanto pelos cantos da sala como no meio das ruas. Devido à falta de sensibilidade, não os sentimos escapar, nos tornando tristes Cinderelas do dia a dia. Por isso a escolha de Claudia é perfeita. A caixa guardava todos os seus passos.

Os cadarços se entrelaçam. A moldura, antes vazia, é preenchida pelos fios antigos de náilon, novamente úteis porque amarram os calçados em suas arestas. O movimento é realizado de maneira trêmula e incômoda, porque é assim que devem ser. Além da deficiência adquirida, o AVC de Claudia trouxe muitos sentimentos à tona. A dor de ter sido a escolhida pelo acidente, de ter acontecido de madrugada e acordado seus filhos pequenos, de ter chegado tarde no hospital e, ainda assim, ser negligenciada pelo diagnóstico de “siricutico de mulher”, em mais um ato implacável do machismo em suas várias formas de matar. Nem um som é expresso, mas o movimento demonstra a fala de uma voz silenciada pela afasia enquanto as mãos trabalham, sempre fortes e sábias, espásticas e descompassadas.

A moldura se preenche. Seu interior é desenhado por linhas pretas que se entrelaçam, como os neurônios fazem no interior de nossa cabeça guardando informações fúteis e construindo a nossa memória. Dizem que quando a gente morre, assistimos o filme da nossa existência, só que isso acontece no dia a dia, bem quando não estamos prestando atenção. Bem quando nos preocupamos com muita coisa e deixamos importantes escolhas para depois, no instante em que ficamos parados e com medo. É bem nesse momento que preenchemos nossa história.

Quando morremos ou quando acordamos de um AVC, uma das primeiras preocupações é saber o que restou de nós. Se em um desastre aéreo, mesmo com a aeronave em estilhaços, ainda é possível identificar sua história por meio da caixa preta, em qual dos nossos neurônios intactos a nossa identidade estará? Não é por menos que ficamos emotivos e inseguros, que perdemos a noção do tempo e do espaço. Buscamos, em meio ao desespero das lesões cognitivas, os principais alicerces de nossa personalidade. É entre os destroços neurológicos que somos punidos e julgados por aqueles que não têm ideia do que estamos fazendo.

O único jeito de sobreviver a um AVC não é biológico, quem dera fosse simples o suficiente para um jaleco branco consertar. Sobreviver a um AVC leva anos, porque requer descobrir o que ainda somos e emoldurar presente, passado e futuro em nossas cabeças, encontrar os miolos que mesmo fragmentados ainda estão lá. Nossa vida foi fragmentada, mas pode ser reconstruída. Tanto a arte como o afeto permitem tal ousadia.

O trabalho se concretiza. Claudia já amarrou todo os cantos de sua escultura, porque hoje ela não se reconhece de outra forma. O AVC veio e rasgou a sua vida, e todas as lembranças construíram uma nova história. Seus movimentos estão mais calmos e transbordam amorosidade. Ela ajeita a moldura para uma exposição, e sai do palco leve, arrastando a sua caixa-preta desbotada e intacta. Ela vai em busca de novos elementos porque enquanto estiver viva, sua obra nunca estará finalizada

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