A voz dos afásicos

Quando acordamos de um AVC, a sensação que temos é que tudo foi perdido

“Eu não sei o que eu faria no teu lugar”, “O que vai ser da sua vida agora? E de seus filhos?”, “Tadinho!”. É bem comum ouvirmos frases como essas assim que temos alta de um hospital, após sobreviver a um AVC. Embora sempre haja pessoas mal-intencionadas (que adoram se nutrir da desgraça alheia), há aquelas que falam isso para nos incentivar a sermos fortes, já que já estamos sendo tão “guerreiros” diante da nossa difícil realidade. (Sim, a psiquê humana é uma das mais complexas). Antes de continuar, é importante dizer que esse tipo de estratégia não funciona. Na verdade, o efeito é reverso, já que ouvir tais afirmações é bem devastador, principalmente porque estamos frágeis… E mudos.

Apesar de a afasia (distúrbio que dificulta a expressão da linguagem) geralmente acometer AVCistas com lesão do lado esquerdo do cérebro, todos nós perdemos a fala diante de indagações sobre como será o nosso futuro. Não por uma incapacidade neurológica específica, mas porque ele é uma verdadeira incógnita. Nem o médico, nem os terapeutas e muito menos o paciente sabe como será o amanhã.

Mesmo diante das melhores perspectivas, todos nós sentimos que nossa vida acabou assim que acordamos do coma. A sensação é essa para todos. Mesmo tentando erguer nossa moral diariamente dizendo que: iremos nos recuperar, que vai ser um dia de cada vez, e que no fim tudo vai dar certo, assim que ouvimos comentários depreciativos quanto ao nosso estado físico e emocional, todo esse suave otimismo vai para o ralo.

Como não sabemos o que exatamente houve conosco, tendemos a acreditar muito no que o outro vê, principalmente porque o nosso senso de realidade ainda está muito mal configurado. E quando o outro expressa (mesmo sem intenção) de como a nossa situação é delicada, tal constatação nos deixa simplesmente desesperados. Ninguém quer ser o coitado ou o inútil da história, muito menos nós, que de uma hora para outra fomos atropelados por um AVC.

Por isso é tão importante que o sobrevivente entenda o que aconteceu com o seu corpo e respectivo cérebro nos mínimos detalhes. É o primeiro passo para o empoderamento após uma lesão encefálica adquirida. Muitos familiares e amigos acham que essa medida é prejudicial. Discordo. Acho bem melhor conhecer cada etapa do processo de destruição neurológica sofrido, do que se olhar no espelho nos primeiros meses depois do AVC, ou ainda, ficar confabulando a vida que poderia ter sido e não foi. Descobrir e falar abertamente sobre o que aconteceu e expressar nossos medos e sofrimentos diários nos acalenta a alma. Por incrível que pareça, isso nos fortalece. É um jeito com o qual o cérebro machucado consegue assimilar a tragédia ocorrida e, a partir de então, inseri-la em sua história.

Todos nós, sobreviventes, começamos a segunda parte da nossa existência do ponto final (para nós, o fim da primeira vida é o início da segunda) e para dar continuidade nessa narrativa é preciso muito estudo, revisão e reescrita. As melhores histórias são aquelas em que um importante sinal de pontuação consegue ser modificado: é quando o ponto final da história da primeira vida é substituído por um ponto e vírgula (abrindo espaço para outros momentos surgirem adiante). Neste instante temos a consciência de que essa tragédia neurológica foi e sempre será parte da nossa vida, mas que isso não significa o fim dela. E, apesar de todos nós almejarmos chegar neste estágio, o percurso é deveras complicado. Se todo cérebro reage de modo conflituoso diante de um luto, imagine para nós, que temos parte dos neurônios deteriorados?

Todavia, existe um grande “porém” nisso tudo (e eu, particularmente, gosto muito de “poréns”). Tenho a teoria de que todo sobrevivente de AVC sempre foi uma pessoa resiliente. Alguns sempre souberam disso, outros só descobrem quando acordam do coma. A razão desse pensamento é muito simples: o caos foi tão intenso dentro de um dos principais órgãos do corpo, que era para todos nós termos morrido. Só que, por um acaso fisiológico (ou do destino), nosso cérebro conseguiu resistir a todo esse desastre mental e manter-se vivo. Puxa vida, um cérebro resiliente assim só pode pertencer a uma pessoa resiliente. Faz todo sentido!

Só que a gente não sabe disso assim que sobrevivemos a um AVC (a nossa ficha demora a cair porque somos mais lentos, lembra?). Então, corremos o perigo de acreditar naquelas bobagens descritas no início do texto, porque naquele momento esquecemos que independentemente dos obstáculos existentes no caminho, sempre arrumaremos um jeito de passar por eles. Faz parte da nossa essência. Mas, durante esse lapso de memória, ficamos mudos, sem conseguir rebater essas falas horrendas.
Tive esse insight assistindo à apresentação de um coral de afásicos num simpósio da ABRAELA (Associação Brasileira de Lesão Encefálica Adquirida), que participei no fim de agosto. Sim, foi isso mesmo que você leu: eu vi e prestigiei um CORAL DE AFÁSICOS, em que sobreviventes que perderam a capacidade de falar após um AVC cantavam. Juntos.

Este trabalho é um dos projetos do Ser em Cena, uma instituição sem fins lucrativos de São Paulo que tem como objetivo auxiliar na reabilitação de pessoas com distúrbios de comunicação e promover a integração social delas por meio da arte. Lá, quem foi condenado por uma lesão cerebral a nunca mais falar é convidado a cantar, e assim, redescobrir a sua voz. Lá, quem foi marginalizado de sua própria vida após adquirir afasia é convidado a estar no centro do palco.

Toda essa magia acontece não apenas pelo projeto em si (que é maravilhoso), mas por quem participa dele. Todo sobrevivente de AVC sabe que, como não tem como voltar atrás, o jeito é procurar novas maneiras de seguir em frente. É assim que funciona a nossa reabilitação: não andamos, mas marcharmos; perdemos o raciocínio rápido, mas refletimos constantemente sobre o mundo que nos cerca; perdemos a nossa individualidade e nos recuperamos em conjunto.

Como danifiquei a parte direita do cérebro, não tenho afasia. Mas muitas das pessoas da minha comunidade que lesionaram o outro lado do cérebro são afásicas, e são justamente elas que respondem as perguntas mais duras dos sobreviventes de lesões cerebrais sobre o futuro. Assim como a voz de um afásico, a essência de todo sobrevivente de AVC é capaz de desbravar novos caminhos, tanto chorando como cantando. Apesar do terror e da solidão impostos por um AVC, a gente incrivelmente consegue se reinventar. E este é o espetáculo mais lindo da Terra!

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

Há saída para a violência?

Há que se ter coragem para assumir, em espaços conservadores como o Poder Judiciário, posturas contramajoritárias como as que propõe a Justiça Restaurativa

Leia mais »

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima