A garota da capa

Dizem que a televisão e a moda são espaços em que a imagem conta, mas não é necessariamente de beleza que estamos falando, mas de “padrão”, o padrão da perfeição em que corpos diferentes não têm espaços

Ao sofrermos um AVC, nosso cérebro fica lesionado e isso reflete no corpo. Nós sobrevivemos ao AVC e nascemos como PCD (Pessoas com Deficiência). E nisso começa uma nova vida de conquistas e de luta: a inclusão é uma delas.

AVC não tem idade. O da Juliana aconteceu quando ela tinha dezoito anos. Foi na cafeteria da faculdade, no intervalo entre duas aulas do seu primeiro período. Ela se sentiu mal, pediu água e, nesse meio tempo, sentiu o seu lado esquerdo do corpo perder força. Sua boca entortou, ela caiu no chão e houve a primeira convulsão. Levaram-na ao hospital. Lá, suspeitaram de overdose (como sempre), mas era um AVC hemorrágico oriundo de um rompimento de uma MAV (malformação arteriovenosa), uma condição formada quando Juliana ainda estava no útero de sua mãe, e que resolveu se romper justamente naquele dia. Acontece. Fazer o quê?

Os dias seguintes foram difíceis, assim como é para todos nós sobreviventes. Foi difícil aceitar o acidente, os cabelos raspados por causa das cirurgias, as fraldas, os meses na cadeira de rodas, as doloridas sessões de fisioterapias, fonoaudiologia, terapia ocupacional e as inúmeras sessões de vários especialistas… Todos tão envolvidos com o seu corpo, aquela massa que, de repente, se tornou algo tão longe de quem você é. Foi difícil engolir o sumiço das colegas de faculdade e do namorado, assim como o olhar de tristeza dos poucos que a visitavam. Tudo isso foi um porre sem a parte boa do álcool, mas Ju (nessa altura da história já somos íntimas) deu a volta por cima e se recuperou desses horrores. Voltou a falar e a andar sozinha, e como sempre focou somente em sua recuperação, nunca se importou por mancar e por ter uma das mãos fechada, traços bem comuns da hemiparesia – uma das deficiências mais comuns após AVC.

Como nessa nova vida ela quis tudo novo, resolveu largar a antiga faculdade e ir em busca de seu sonho de infância: ser atriz. E então, fez vestibular para Artes Cênicas e passou com louvor. Foi a partir daí que ela começou a ouvir umas coisas esquisitas: se logo após o acidente ela começou a ser chamada de “coitadinha”, agora ela se tornara a “guerreira”, um “exemplo de superação”, simplesmente porque resolveu continuar a vida e entrar numa faculdade. O triste em se ouvir essas coisas é porque a gente percebe que o real motivo do elogio não é o nosso esforço ou talento, mas a deficiência. É uma objetificação do corpo deficiente para melhorar o olhar da pessoa sem deficiência perante a sua vida medíocre. “Você me inspira a lutar pelos meus sonhos porque luta pelos seus, mesmo estando neste corpo”. Sim, querido, a gente entende o verdadeiro significado contido nas entrelinhas. E sim, é muito cruel de sua parte pensar assim. A nossa deficiência se torna um fardo aos olhos do outro, que nos minimiza a partir dela. Como se fôssemos apenas ela. (Eu mesma, sou um universo de fatores muito além do AVC, da minha mão espástica e do meu mancar único). Além disso, não há como superar uma deficiência, mas há como encontrar meios de se conviver com ela. É esse o nosso objetivo. Mas, vamos continuar com a história, assim como Juliana continuou com a sua vida.

Como Ju estava fazendo o que curtia e nunca teve medo de sair de sua zona de conforto, ela foi se destacando cada vez mais em seu trabalho como atriz. Não havia papel que não se iluminasse com a sua atuação. Todas as suas personagens eram muito bem construídas, tinham personalidades únicas e faziam muito sucesso nas peças da faculdade. Aliás, ouso dizer que ter Juliana no palco era sinônimo de “casa cheia” no teatro. Tudo estava indo muito bem até que, no fim do curso, os professores e diretores sutilmente lhe indicaram boas companhias de teatros alternativos para que ela seguisse com a sua carreira. Juliana respeitava muito o trabalho do teatro alternativo, porém, seu sonho sempre foi a televisão. A partir do momento em que ela disse isso aos seus orientadores, algumas caretas começaram a ser feitas. “Puxa, Ju, que pena, você não tem perfil para televisão”.

Juliana, que de trouxa nunca teve nada, sabia exatamente que este perfil estava diretamente relacionado à sua deficiência (assim como aqueles “elogios” recebidos quando passou no vestibular). Além disso, sua mão e seu mancar já tinham sido reprovados em vários testes nos últimos anos. Mesmo tentando enfatizar um possível mal desempenho na atuação, os avaliadores sempre deixavam escapar algum detalhe de como a sua dificuldade de mobilidade poderia atrapalhar o desenvolvimento daquele papel e blábláblá.

O cúmulo chegou ao ápice quando Ju foi reprovada em um teste para um papel de uma pessoa com deficiência. Justificativa: o papel era de uma personagem cega, e não manca e com esse “probleminha” na mão. Nem o talento, nem a vivência de Juliana foram levados em conta, já que por mais diferentes que sejam as deficiências, todo PCD sabe o que é receber o olhar de preconceito ou de averiguação de deficiência quando estamos ocupando uma fila preferencial. A sensação é a mesma para todos.

Dizem que a televisão e a moda são espaços em que a imagem conta, mas não é necessariamente de beleza que estamos falando, mas de “padrão”, o padrão da perfeição em que corpos diferentes não têm espaços. As grandes marcas dizem que não contratam PCDs para as suas campanhas por receio de que os clientes não se sintam motivados a comprar seus produtos. Mas será que você deixaria de comprar um shampoo cujo comercial é promovido por uma influencer PCD, ou deixaria de comprar uma revista com uma matéria sobre o talento de uma atriz como Juliana na capa? Se sim, já chegou a se questionar o porquê?

Setembro é um mês de várias campanhas sociais, inclusive o “Setembro Verde”, que se refere à luta pelos direitos e inclusão social da pessoa com deficiência, tendo o dia 21 como seu dia de referência. De acordo com o PNS (Pesquisa Nacional de Saúde) de 2019, 17,3% milhões de brasileiros têm algum grau de deficiência, e essas pessoas, sempre que é possível, são excluídas e desumanizadas. A história de Juliana é um exemplo claro de como a inclusão é necessária para que nós, Pessoas com Deficiência, tenhamos a dignidade de trabalhar, amar, conviver e sermos reconhecidos pelo nosso talento e por quem somos. Note que no texto relatado não houve falta de acessibilidade, já que Ju teve o acesso necessário ao estudo para se tornar atriz. A porta estava fechada na hora de ela seguir a sua carreira. Ela foi excluída não por falta de esforço ou de talento, mas por seu corpo ser diferente, por estar fora do padrão imposto pelo sistema.

Por isso, já passou da hora da luta de PCDs por inclusão continuar sendo ignorada.  Já passou da hora de PCDs continuarem sendo chamados de “coitadinhos” e “exemplos de superação” (Pelamor!). Já passou da hora de pessoas como Juliana continuarem a ser excluídas da televisão, de altos cargos no mercado de trabalho e da grande mídia. Para sermos respeitados, precisamos ser visíveis, e para isso é preciso que pessoas com deficiência estejam em evidência, na capa das revistas. Eu quero Juliana na capa!

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

O (des)encontro com Têmis

Têmis gostaria de ir ao encontro de Maria, uma jovem vítima de violência doméstica, mas o Brasil foi o grande responsável pelo desencontro

Leia mais »

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima