Independência e morte

Bolsonaro colocou abaixo o pouco que conquistamos desde que nos despedimos da ditadura

Não deixa de ser de uma amarga ironia, que o bicentenário da Independência transcorrerá em meio a ameaças de golpe e em um clima de hostilidade e violência política inédito na história de nossa democracia recente.

Se na ditadura a data era pretexto para reforçar um patriotismo que se confundia com a adesão, voluntária ou involuntária, ao regime, em 2022 o presidente convoca seus cúmplices para ir às ruas defender seu legado de quatro anos de incompetência, miséria, fome, desigualdade, corrupção e ódio.

Além da pilha de cadáveres produzidos durante a pandemia – quase 700 mil mortos –, pela inércia, proposital e criminosa, de um governo que boicotou todas as medidas de prevenção, criou e espalhou o negacionismo e atrasou a compra e distribuição de vacinas enquanto defendia o uso de medicamentos ineficazes contra a covid.

No ano passado escrevi, nessa coluna, que Bolsonaro havia sido eleito, em 2018, não apesar de seus vícios, de seus vínculos escusos com as milícias, de seus preconceitos e de seu autoritarismo. Ele foi eleito justamente por eles.

Isso é ainda mais verdadeiro na eleição desta ano.

Em quatro anos de governo, Bolsonaro fez do Brasil terra arrasada, executando cuidadosamente um projeto que colocou abaixo o pouco que conquistamos desde que nos despedimos da ditadura. Não apenas a democracia foi atacada, mas também o frágil tecido civilizatório que intentamos construir nas últimas quatro décadas.

O Brasil é, sob Bolsonaro, um país mais violento, mais desigual e mais miserável. A malha de proteção social foi esgarçada, e há quem se alimente de restos catados no lixo para não sucumbir à fome – fome que inexiste, segundo o presidente. Reféns de um reacionarismo teocrático, assistimos ataques constantes aos parcos direitos conquistados pelas chamadas minorias.

A educação, em todos os níveis, foi sucateada, e a precarização da escola pública caminha a passos largos para transformar nossos adolescentes em mão de obra barata para saciar a fome do mercado. Nosso patrimônio natural asfixia enquanto a “boiada passa”, para o gozo do agronegócio, fiel aliado do governo.

Cidadãos autoproclamados “de bem” saem às ruas armados e matam quem consideram seus inimigos, autorizados por um governo para quem a morte se tornou palavra de ordem: o que é uma vida, afinal, se naturalizamos a perda de milhares delas?

Não causa espanto, por isso, que além das comemorações patrióticas e militarizadas e das manifestações antidemocráticas, o bicentenário seja comemorado com um retorno ao passado imperial e autocrático, representado pelo translado do coração de D. Pedro I.

Emprestado pelo governo português, o coração pode ser visto pelo público no Palácio do Itamaraty até o último domingo, 4 de setembro, em uma exposição que recebeu por nome “Um coração ardoroso: vida e legado de D. Pedro I”.

Um tanto piegas, a exposição do coração do primeiro monarca, conservado em formol, colabora não apenas com o revisionismo histórico em curso, de que a reabilitação da monarquia é apenas uma pequena parte. O mise-en-scène, tampouco, é mero diversionismo de um governo aficionado pela versão oficial e monumental do nosso passado.

Reverenciar o “coração ardoroso” de Pedro I é oferecer a utopia de um passado supostamente glorioso, não apenas para aplacar as misérias e violências do presente, mas para justificar o assassinato de nossas expectativas de futuro. Dito de outro modo, o bicentenário poderia ser a oportunidade para refletirmos sobre nosso projeto de nação, sobre o que fizemos de nós mesmos nesses duzentos anos, e sobre o que queremos para o nosso futuro.

Bolsonaro e o bolsonarismo não apenas estreitaram nosso presente, mas sequestraram nossas possibilidades de futuro. Passaremos o bicentenário de nossa independência contabilizando nossos cadáveres. Não há nada a comemorar.

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