Café no copo de vidro

Não há solução para o amargor do fim, seja o de situações cotidianas ou de uma vida

A vida é simples, não caótica. O tempo todo somos levados a acreditar que o certo é ter uma rotina irregular e apressada, mas na verdade, o sentido de tudo é claro e descomplicado. Aprendi isso depois de sobreviver a um AVC, um professor me ensinou.

Em meados de 2020 entrei em recuperação. Foi muito difícil entrar nesta classe, admito. Era muito injusto estar ali, porque sempre tive uma vida regrada, com muitos estudos, exercícios físicos e alimentação balanceada. Porém, tirei nota baixa numa prova de biologia, especificamente sobre sistema circulatório e neurológico, e acabei tendo que entrar nessa escola diferente em que eram necessárias muitas horas de fonoaudiologia, fisioterapia e de lições básicas de uma nova vida.

Obviamente, havia um outro mundo fora desta classe, um mundo que já havia pertencido, com festas, corridas e amigos. Um mundo interessante, embora, somente acessível para as pessoas perfeitas e saudáveis: características nada compatíveis com a minha realidade pós-AVC. Talvez a saudade do meu passado fosse um dos motivos de eu estar sempre triste e de mau humor durante o meu primeiro período nesta escola imperfeita, já que era injusto estar ali. Mas, naquela época, não tinha muitas outras opções de lugares para frequentar. Então, fui apenas ficando.

A primeira aula do dia era on-line (somos especialistas nisso bem antes da pandemia existir), com um professor simpático que aparecia sempre com um café preto no copo americano (desjejum típico da cidade de São Paulo), e enquanto passava manteiga no pão, falava coisas triviais da vida, assim como quem divide a mesa do café da manhã com um amigo ou um vizinho. Como o ambiente era a cozinha dele, não havia muita escapatória: a única saída era sentar-se à mesa. E era assim que todos nós, sobreviventes em recuperação, começávamos os nossos dias, ou como o mestre gosta de dizer: a nossa luta diária.

No início, a persistente felicidade dele me angustiava, porque tinha medo de confiar em suas palavras e me decepcionar tendo um outro AVC ou alguma outra intercorrência médica e piorar. É difícil acreditar na felicidade quando a vida lhe dá uma rasteira no âmbito da saúde. Vai que eu acredite nessa parada de ressignificação e piore? Se isso acontecesse, o que seria emocionalmente do que restou de mim?
Só que paulistano sabe lidar com gente desconfiada e professor é um tipo de ser humano bastante insistente: Cristiano é os dois. E ainda, sobrevivente de AVC. Todo esse currículo em si já comprova que ele sabe bem do que está falando quando diz que existe uma vida pós lesão cerebral, mas não é nisso em que se concentra a sua sabedoria: seu conhecimento está em sua simplicidade, assim como o seu café preto no copo de vidro.

Um dia perguntei a ele como foi o seu acidente, e assim, como quem está contando uma história simples, quase sem graça, ele me disse que começou a passar mal durante uma aula de informática que administrava. Antes de pedir ajuda, fez questão de encaminhar a sua turma para a sala de sua disciplina, para que todos se sentissem seguros.

Cristiano teve um AVC hemorrágico, eu também. Foi a pior dor que senti na vida: uma dor tão forte que não dá para respirar. Na barganha da situação a gente faz qualquer negócio para deixar de sentir os neurônios se deteriorando, ao ponto de até mesmo a ideia de morrer torna-se um alívio. Lembro que durante minha estadia na UTI, a equipe médica ficou pasma ao saber que aguentei a dor do sangue na cabeça ao ponto de pedir ajuda pelo telefone. Imagina guiar uma turma inteira, barulhenta e dispersa até uma sala de aula antes de se encontrar com a morte? Inimaginável, algo somente compatível com o senso de responsabilidade de um professor.

Poucas coisas sei sobre a morte, mas acredito que ela não se surpreende com facilidade; não é dada a costumes, discursos e altos e baixos da bolsa de valores. Para a morte, essas coisas tão importantes para nós são apenas detalhes. Porém, acredito que ela se surpreende com quem a recebe de braços abertos. Atitudes simples assim encantam a Dona Morte. Imagino que ao se encontrar com Cris, este, por seu hábito, a convidou para sentar-se à mesa e tomar um café recém passadinho. Ela, sem jeito, aceitou o convite e, olhando para o rosto sincero de quem deveria levar consigo, mudou de ideia e acabou por convencê-lo a continuar a lecionar, mas outra matéria e com um outro tipo de turma: mais selecionada. Assim, os desesperançosos sobreviventes de AVC ganharam um novo professor para ensinar as peripécias de uma segunda vida, por meio de lições complexas ensinadas de um jeito cristalino durante um café, uma caminhada na praça ou uma tarefa de jardinagem.

Ao contrário da maioria dos docentes, Cristiano fica triste com a crescente entrada de novos alunos em sua turma, porque sabe que uma dor devastadora os trouxe até lá. Uma dor que não tem um sentido, antídoto, e muito menos uma cura. Tudo é tão caótico, ao ponto de somente um coração simples saber entender; assim como um fresquinho pão com manteiga servido com um café quentinho é o suficiente para começar o dia.

Não há solução para o amargor do fim, seja o de situações cotidianas ou de uma vida. Há apenas a aceitação e o ato de se fazer somente o que lhe for possível, o que já é muito, como o de ligar o telefone ou guiar todos os alunos para um lugar seguro. O professor também me ensinou que não há fórmula mágica para se recuperar de um trauma ou de um cérebro machucado, mas compreender que a magia está em viver cada dia de uma vez e continuar vivendo, pois é isso que nós sobreviventes fazemos: morremos e continuamos vivendo.

À medida que os alunos entendem como adaptar a matéria ensinada à sua vida diária, dispersam-se, e alguns acabam saindo da classe. Quando isso acontece, nosso professor se sente feliz, pois sabe que o sobrevivente está melhor consigo mesmo e com a sua lesão encefálica adquirida. Ele sabe que o aprendiz já faz sua tarefa de casa sem precisar frequentar todas as aulas. Esta é a missão de um verdadeiro mestre: guiar cada pessoa ao ponto que ela deseja alcançar com sabedoria e afeto, já que seu objetivo não é reter, nem controlar, mas oferecer a mão durante uma difícil transição.

Um dia durante um café com o professor (talvez por admiração tenha adquirido esse mesmo hábito), me questionei sobre o porquê de ainda falar tanto sobre AVC. É simples – ele disse – você se importa. É verdade, professor, mais uma vez você tem razão. Eu me importo, e o senhor também.

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