A bancada evangélica e o triângulo rosa do fundamentalismo religioso

Não tenho dúvidas de que, para a bancada da Bíblia, a comunidade LGBTQIA+ brasileira deveria ser confinada a um gueto, à espera do envio para campos de concentração

Está em discussão na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância e Família da Câmara dos Deputados o parecer do deputado evangélico Pastor Eurico Miranda ao PL 580/2007, que pretende proibir o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, um direito garantido pelo STF desde 2011.

Na sessão da última terça (19), um show de horrores protagonizado por fanáticos e fundamentalistas religiosos investidos da função de parlamentares, um acordo adiou a votação para a próxima semana. Uma audiência pública sobre o tema será realizada na terça, dia anterior à votação.

Em seu parecer, o deputado Pastor Eurico Miranda argumenta que “o casamento representa uma realidade objetiva e atemporal, que tem como ponto de partida e finalidade a procriação” e, por isso, a união entre pessoas do mesmo sexo é “contrário à verdade do ser humano”.

Há uma proposital ironia, muita ignorância e um grau extremo de perversidade no texto.

Ele contradiz o PL original, apresentado pelo então deputado Clodovil Hernandes, que pretendia, justamente, alterar o Código Civil para autorizar a união homoafetiva. Além disso, e talvez também de forma proposital, o parecer ignora a historicidade da família e a naturaliza, tratando-a, nas suas palavras, como “uma realizada objetiva e atemporal”,

Durante séculos a noção de família, tal como a conhecemos hoje, inexistiu. No medievo, por exemplo, o indivíduo vivia “enquadrado em solidariedades coletivas, feudais e comunitárias”, segundo o historiador francês Philippe Ariès. Um mundo que não era nem inteiramente privado e familiar, mas também não completamente público, pois ambos se confundem no cenário que antecede e que prepara a época moderna.

O quadro não é muito diferente nos séculos subsequentes. As mudanças mais significativas acontecerão principalmente a partir do século XVIII, que vê consolidar-se uma família que vai, cada vez mais, concentrar boa parte das manifestações da vida privada, independente, inclusive, das classes sociais.

Num primeiro momento, ela substitui a comunidade, mas a tendência é que se transforme, ao menos idealmente, em um lugar de refúgio, de afetividade e atenção, e não mais unicamente uma unidade econômica, responsável pela sobrevivência material e física do indivíduo, como nos séculos anteriores.

E é esta, grosso modo, a família que alcança os séculos XX e o atual, a que chamamos na falta de melhor definição, de “nuclear”. Não menos importante, nenhum desses arranjos roça a família bíblica reivindicada pelos fundamentalistas do Congresso Nacional, com configurações que soam bizarra aos olhos coevos, como observou em uma de suas intervenções o deputado Henrique Vieira, também pastor, do PSOL carioca.

Perversidade e violência

Mas é o grau de perversidade e de ódio do relatório e daqueles que o defendem que deveria nos chocar, se já não estivéssemos acostumados com o quão perversos são os que usam o parlamento como extensão de seus púlpitos e que pretendem transformar o país em uma grande teocracia cristã.

Deixemos de lado a argumentação apenas pretensamente jurídica. É verdade que a Constituição de 1988 sugere, em seu artigo 226, que o casamento e a família são constituídos por um casal heteronormativo. Mas a própria elasticidade do texto constitucional no que tange ao tema, passadas mais de três décadas de sua promulgação, pede pela sua atualização, o que fez o STF ante a indiferença do parlamento.

Como disse antes, confrontar a decisão da Suprema Corte, pautada por “propósitos ideológicos”, de acordo com Eurico Miranda, é apenas o pretexto de fundo para a que é, efetivamente, a razão mesmo da cruzada evangélica contra a comunidade LGBTQIA+, escancarada, algumas vezes aos gritos, na sessão da Comissão da última terça.

Com direito a deputado afirmando, bíblia na mão, que “homem nasce como homem com binga” e “mulher nasce com sua cocota, sua tcheca”, as intervenções dos defensores do parecer destilaram ódio e escancaram o que efetivamente pretendem: solapar direitos civis de uma comunidade, a LGBTQIA+, sob o pretexto, mentiroso, de que a garantia, pelo Estado, do casamento homossexual ameaça a integridade e a fé de outra, a cristã.

Mas é o contrário, como sabemos todas e todos, inclusive os parlamentares evangélicos: somos, entre os países democráticos, um dos que mais mata sua população LGBTQIA+.

Segundo o Grupo Gay da Bahia, foram 242 homicídios em 2022, uma morte a cada 34 horas. O número de mortos é maior entre a população gay masculina, seguida de perto pelas travestis. Pesquisa da UFMG em parceria com o Ministério da Saúde e o IBGE, mostra que gays, lésbicas e outras “minorias sexuais” têm três vezes mais chances de sofrer algum tipo de violência que a população heterossexual.

Indiferença ao sofrimento

Confundidos com gays, nos últimos anos cerca de 20 homens héteros foram assassinados. Em 2014, Alex, de apenas oito anos, foi espancado até a morte pelo pai, que o achava “afeminado” e queria que ele “andasse como um homem”. Em 2017, Itaberlly Lozano, um adolescente gay de 17 anos, foi morto a facadas pela mãe e o padrasto que esconderam o corpo, depois de carbonizado, em um canavial.

O índice de suicídios entre adolescentes e jovens gays é igualmente desalentador.

Mas a violência não é apenas física: LGBTs são preteridos ou demitidos de empregos; constrangidos em lugares públicos e hostilizados quando demonstram afeto; expulsos do convívio familiar e de amigos; ridicularizados por programas de humor e humoristas politicamente incorretos; desrespeitados em ambientes públicos.

Pesquisas recentes mostram que o bullying homofóbico nas escolas colabora para elevar os índices de repetência, evasão escolar e suicídio entre adolescentes. Apesar da posição oficial de entidades como a OMS e o Conselho Federal de Psicologia, a homossexualidade ainda é tratada como doença por alguns profissionais de saúde, e há mesmo quem faça carreira vendendo a “cura gay” em consultórios e clínicas particulares.

Indiferentes à violência e ao sofrimento da população LGBTQIA+, os parlamentares da bancada evangélica pretendem aumentá-los, retirando um direito civil e tratando 12% da população brasileira como subcidadãos. A ordem, afinal, expressa por ninguém menos que o genocida a quem essa gente trata como mito, é que as minorias se submetam à maioria. Ou desapareçam.

No começo do século XX a Alemanha era uma das poucas sociedades ocidentais a manter, em relação aos homossexuais, uma postura de franca e aberta tolerância. Um bom exemplo disso era a obsolescência do parágrafo 175 do seu Código Penal, que criminalizava a homossexualidade, na mesma época em que a Inglaterra condenava à prisão com trabalhos forçados Oscar Wilde, culpado do crime de “sodomia”.

A atitude alemã, liberal, sobreviveria até os anos de 1930, quando o nazismo ascende à condição de regime de governo, fruto de um avanço conservador que foi, entre outras coisas, reação a uma sociedade considerada por alguns como “degenerada”.

O resultado foi uma perseguição desenfreada aos homossexuais, condenados muitos deles a amargar anos de sofrimento, humilhação e morte nos campos de concentração, onde eram identificados e à sua condição por um triângulo rosa costurado em seus uniformes. Não existem estatísticas sobre o número exato de homossexuais mortos nos campos, mas não é exagero afirmar que centenas pereceram vítimas da sanha genocida do nazismo.

Não tenho dúvidas de que, para a bancada da Bíblia, a comunidade LGBTQIA+ brasileira seria confinada a um gueto, esperando serem enviadas aos campos de concentração. Na impossibilidade de fazê-lo, movem contra ela, em nome da fé e de Deus, uma sanha persecutória baseada no desprezo, no ódio e no preconceito. Não podendo eliminá-la fisicamente, querem exterminá-la jurídica e simbolicamente.

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