Sertânia é um tratado sobre o Brasil e nossa violência

Dirigido pelo veterano Geraldo Sarno, longa-metragem nasce clássico, com vigor estético e polifonia de ideias

Sertânia, uma das raras ficções na carreira do cineasta baiano Geraldo Sarno, é uma ode ao cinema e um recorte preciso acerca da violência que fundamenta o Brasil e nosso patriarcalismo. O filme, que vem sendo alçado à condição de clássico imediato, narra a vida e os delírios de Antão após ser atingido por disparo em um confronto entre o seu bando de cangaceiros e uma volante de policiais. Sertânia, contudo, vai muito além do que essa sinopse tão desgastada por anos e anos de filmes de cangaço dá a entender. Geraldo Sarno estreou como diretor em 1965 com o incontornável curta-metragem Viramundo, realizou outros diversos documentários, atravessou o Cinema Novo, a Embrafilme e a Retomada. Hoje, com 83 anos, apresenta uma obra de invenção que está à frente de grande parte da cinematografia brasileira contemporânea, com seus cineastas tão afeitos a modismos de linguagem e conteúdo.

O Brasil tem um longo histórico de filmes sociais. O próprio Geraldo Sarno dedicou sua vida e carreira a eles. Contudo, sobretudo na última década – e me arriscando a uma generalização de grandes erros – temos visto uma crescente produção muito afeita ao conteúdo e pouco à forma. Ou seja, continuamos produzindo filmes que pensam e repensam o país, mas sem o vigor estilístico de outrora. Atravessamos tempos de grande impacto na micro e na macropolítica, vemos uma reacomodação de atores sociais, uma grande presença de protagonistas que antes eram relegados à condição de figurantes (falo da revolução identitária que tem balançado as teias de discursos solidificados). Assim, é compreensível que o cinema acompanhe a transformação que a sociedade vê e, na sua vocação de espelho, ponha à luz as falas que perpassam estes anos duros. Mas nesse movimento de dar voz a quem não tinha voz, parece que estamos esquecendo que cinema é também linguagem, ilusão, mágica e arte. É como se o cinema nacional estivesse no extremo oposto do que fora durante o Cinema Novo, lá nas décadas de 1960 e 1970, quando a preocupação era sobretudo pela estética e, embora pensasse o cinema como ato revolucionário, não tinha envergadura para chegar ao povo, pois hermético.

Sertânia procura justamente essa pulsão pela forma. Olha para o Cinema Novo e para o cinema contemporâneo mesclando linguagem e discurso. Atualiza as representações pictóricas do cangaço e do sertão, debate o Brasil atual e do passado. Uma dessas atualizações se faz presente, por exemplo, na forma como enxerga os cangaceiros, mais próxima da história, vendo-os mais como mercenários do que como justiceiros sociais.

Em Sertânia, Geraldo Sarno consegue fazer um tratado sobre o papel masculino na construção de um país. São todos homens os personagens principais. São esses homens que matam, morrem e sofrem. Quase no final, surge uma fotografia que funciona como síntese, uma extensa família formada apenas por mulheres, da senhora idosa, à criança de colo. É como se o filme nos dissesse, essa é a fotografia de um país, pois os homens dessa nação estão ausentes.

Antão, o protagonista, atravessa quase a totalidade dos 97 minutos de projeção em um delírio à beira da morte. Ele repensa a vida e visita fatos do passado. Uma pergunta lhe atravessa a todo instante, “e o pai?”. Ele não sabe de seu paradeiro, sumido desde que Antão era criança. Em um dos momentos mais impressionantes, Antão vai até o Hades (ou uma representação do que seria o Hades sertanejo) para tentar descobrir sobre seu pai.

Antão nasce em Canudos e vê sua cidade ser destruída pelo exército, ainda na infância. De lá, é levado para São Paulo e passa a ter como referência paterna um militar. Ele próprio se torna um soldado, mas larga tudo quando volta para o sertão e acaba virando cangaceiro do bando de Jesuíno, lindamente interpretado por Julio Adrião.

Os temas apresentados e debatidos em Setânia são muitos. É uma obra polifônica e de fôlego, com um vigor pouco visto por aí. É, sobretudo, uma experiência sensorial que acerta o espectador na boca do estômago. É também uma fotografia do Brasil.

Sertânia

2019, FIC, 97min. Disponível até o dia 5 de maio na plataforma Sesc Digital.


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E ele faz de conta que não é com ele…
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