A professora virgem, os governantes puritanos e “O Avesso da Pele”

O mesmo puritanismo que levava a exigir professoras solteiras no século 20 agora barra livros sobre racismo nas escolas

O estado de Santa Catarina aprovou uma lei em 1917 determinando o seguinte: qualquer professora que viesse a “contrair matrimônio” era obrigada a deixar imediatamente o magistério. A lei foi defendida com base em argumentos que hoje podem parecer impossíveis.

Um artigo que saiu num jornal de Alagoas, pedindo que a resolução fosse imitada por lá, afirmava que a situação era clara. O casamento exigia dedicação plena da mulher, e caso ela dividisse seu tempo entre as aulas e os cuidados com a casa, não conseguiria fazer bem nem uma coisa nem a outra. Sairiam perdendo a escola e a casa.

Mas havia ainda um outro argumento, segundo a cineasta Flávia Person, que fez um documentário sobre Antonieta de Barros, contou ao podcast Vidas Negras. Existia o medo de que as crianças, ao saber que a professora era casada, começassem a se interessar pela vida sexual dela, e a fazer perguntas indiscretas.

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Pode parecer maluquice, mas existem várias regras que de fato obrigavam as professoras a terem uma vida de mulher de César (embora nem com César pudessem se casar). Em alguns lugares, por exemplo, as professoras podiam perder o cargo se fossem vistas na rua depois de 20h.

A ideia de que as professoras precisavam ser solteiras e virgens tem tudo a ver com o puritanismo da sociedade brasileira. No começo do século 20, isso se traduzia em medidas como essa. Cem anos depois, sem poder mais manter o mesmo controle sobre a vida das profissionais de educação, o fetiche se voltou contra aquilo que é ensinado: as aulas, os materiais didáticos, os livros.

“O Avesso da Pele”

A “Escola sem Partido” é o movimento mais representativo desse tipo de pensamento, mas não é o único. A ideia do homeschooling, que tenta manter os filhos dos casais religiosos e conservadores estudando em casa, longe da influência perniciosa da sociedade laica, vai na mesma direção.

Agora, vem a censura aos livros. No momento, trata-se do belo “O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório. Mas já houve outros casos, como lembra Clóvis Gruner em sua coluna. E é evidente, a essa altura, que muitos mais virão.

Para ficar no caso do livro de Jeferson Tenório. Embora tivesse ouvido falar muito do romance, eu não tinha lido. Com todo esse burburinho, fui atrás e li na semana passada. O livro é forte em vários sentidos, mas principalmente é uma denúncia sobre o racismo no Brasil e especificamente em Porto Alegre.

A história é toda narrada pelo filho de um professor negro que acaba de ser assassinado (pela polícia, vamos descobrir mais tarde). Um homem que passou a vida sofrendo preconceito (nos namoros, na escola, nas ruas) e que acaba sendo morto novamente por puro racismo.

Pedro (o filho) reconstitui toda a vida do pai, numa tentativa de conviver com o luto, de entender o mundo que fez aquilo com seu pai, Henrique. E é nesse contexto que ele menciona – entre tantas outras coisas – a vida sexual do pai. E surgem aí os trechos que deram origem a toda a perseguição ao livro, chegando ao ponto de quatro governos estaduais (incluindo o do Paraná) censurarem a obra.

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O relato das partes sexuais, portanto, não é nem aleatório nem pornográfico. É parte de uma tentativa de compreender a vida de alguém na sua integralidade. Assim como o relato do trabalho, das relações do personagem com outras pessoas, da vida em família…

E embora, de fato, o livro seja bastante explícito nesses trechos, só mesmo um puritano poderia achar que descrições sexuais são algo que poderiam fazer mal a um adolescente de 15, 16 ou 17 anos – público para o qual o livro está indicado pelo MEC.

Além do fato óbvio de que esses adolescentes hoje têm meios muito mais fáceis de ter acesso a conteúdos sexuais, deveríamos ter a decência de admitir, depois de tantos séculos de cerco à vida sexual, que sexo não é algo ruim nem pouco salubre. E que, pelo contrário, é a ignorância em relação aos fatos da vida por parte dos nossos adolescentes que deveria nos preocupar.

(Uma anedota: esses dias, alguém dizia na Internet não entender por que havia um aviso antes do filme “Pobres Criaturas” de que havia personagens fumando, quando há tanto sexo no filme. Alguém respondeu: “É que sexo não faz mal para a saúde…”)

Uma deputada gospel que se pronunciou sobre “O Avesso da Pele” na Assembleia Legislativa do Paraná disse que esse tipo de conteúdo poderia levar a abusos sexuais. Qualquer um que leia minimamente sobre o assunto sabe que o contrário é a verdade. As vítimas de abuso em geral são crianças que não foram informadas (muitas vezes por puritanismo) sobre o que é a sexualidade e sobre o que deveria ser evitado.

A literatura, assim como a educação em geral, serve para ensinar fatos do mundo e da vida humana aos alunos. Não faz diferença se a professora é virgem ou se o livro tem conteúdo erótico. O que importa é que os alunos tenham acesso àquilo que vai lhes mostrar que a terra não é plana, que vacinas salvam vidas e que a sociedade (como mostra o livro de Tenório) trata as pessoas de modo diferente de acordo com a cor da pele.

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