Fique calmo! (ou tudo o que você já aprendeu na escola)

Sobre como o ensino, ao longo dos séculos, é só a fachada para a domesticação dos corpos

Fique calmo.

Você tem cinco anos de idade e só queremos que você sente nesta cadeira desconfortável por 5 horas. Em alguns casos mais, em alguns casos menos.

Não começaremos, de fato, por tanto tempo. No início há mais intervalos e períodos lúdicos. Vamos aumentando aos poucos.

Portanto, fique calmo.

Amanhã você também sentará nesta cadeira desconfortável por mais algum tempo.

De segunda a sexta e, às vezes, no sábado também. Embora por menos tempo.

E quando finalmente aprender a sentar nesta cadeira desconfortável por cinco horas, lá na frente colocaremos um sujeito que falará durante as cinco horas sobre assuntos que, possivelmente, não interessam a você.

Não é culpa desse sujeito. Talvez nem ele saiba mais o que está fazendo ali.

Pois ele, antes de você, já teve a fase em que se sentou, durante anos, em uma cadeira desconfortável durante cinco horas, ouvindo alguém falar sobre coisas que não lhe interessavam.

E, depois de passar por um processo desses, repetidamente, é bem possível que ele já não ligue mais para isso. Note como ele fala calmamente. É esse tipo de atitude que queremos de você.

Portanto, fique calmo.

Você não está aprendendo Matemática. Não está aprendendo Língua Portuguesa. Não está aprendendo Ciências. Isso é só a fachada.

O currículo está para o verdadeiro ensino como o restaurante sem movimento está para a lavagem de dinheiro de algum negócio ilícito. É só a fachada.

O que você aprende de verdade é que você deve suportar situações insuportáveis por períodos longos do seu dia, repetidamente ao longo de anos de sua vida.

A cadeira desconfortável em que você se senta por milhões de minutos está moldando sua bunda para o que bilhões de adultos costumam chamar de cotidiano.

Esse aprendizado tornará mais fácil e cômodo aceitar aquilo que se espera de você daqui a alguns anos.

Foto: Pexels.

E o cara lá na frente é uma espécie de boneco de treinamento. A exemplo dos simuladores, ele não pode feri-lo de verdade. Mas está condicionando você para a coisa mais importante nesta vida:

RESPEITAR A AUTORIDADE. A AUTORIDADE SÓ FALA A VERDADE.

E, pode acreditar, você terá oportunidade de respeitá-la e também de ser autoridade, às vezes simultaneamente, às vezes como boneco de treinamento. Ser, nessa máquina, uma engrenagem. Que é movida, mas que move também

Sem respeito à autoridade, o mundo como o conhecemos não funciona. E todo o mundo sabe como o mundo, tal e qual o conhecemos, é ótimo. Todos o adoram. Ninguém quer engrenagens que se movam em algum sentido inesperado.

Então. Fique calmo. E sentado.

Outra coisa importante: errar é horrível.

Esperamos que você só acerte nesta vida.

Sabemos que ter medo de errar prejudica a criatividade, pois a criatividade presume eventuais erros.

Mas também ninguém espera que todo o mundo seja criativo. Afinal, o que seria da ordem e do giro correto das engrenagens se todo o mundo começasse a ser criativo e tivesse liberdade para errar sem medo?

Assim, mais fachada: parece bonito ensinar alguém a só acertar, mas de verdade o que você tem que aprender mesmo é o MEDO DE ERRAR.

O mercado não admite erros.

Não havíamos tocado neste assunto, ainda.

O mercado.

Mas saiba que o mercado é a cola que une a sua bunda a essa cadeira desconfortável. Afinal, você precisa, um dia, ser capaz de ser um empregado e fazer parte do mercado.

É por isso que você está sentado. Sentado e calmo.

Fique calmo.

E, depois de anos de cadeira, ouvindo alguém falar de coisas que não lhe interessam em absoluto, você passará por uma coisa chamada vestibular. Se tiver sorte.

O vestibular verifica se você ouviu e absorveu o suficiente de coisas desinteressantes e se, assim, será capaz de, mais tarde, vender seu tempo para projetos que também não lhe interessam necessariamente. E, assim, ser um empregadoexemplar.

Isso tudo depende de:

  • Sua capacidade de ficar sentado em uma cadeira desconfortável, que indica sua predisposição a suportar situações insuportáveis
  • Sua capacidade de não questionar a autoridade, tão firmemente desenvolvida e fixada ao longo de anos que você nem a percebe
  • Sua capacidade de se interessar por assuntos que não o interessam realmente, que é uma espécie de auto-engano que as grandes empresas costumam chamar hoje de proatividade e de sinergia. É a diferença entre ser um “colaborador” e um “empregado”. O mercado quer que você colabore.

Se você tiver absorvido tudo isso, certamente passará no vestibular. Muito embora – e mais uma vez entramos no tema da fachada – o vestibular pareça medir coisas como Matemática, Língua Portuguesa e Ciências.

Podemos concluir, grosso modo, que quanto mais concorrida a vaga de um curso, mais ela exige das três capacidades acima arroladas.

Matemática, Língua Portuguesa e Ciências são índices apenas. Na verdade, estão para o verdadeiro ensino como o hambúrguer está para o cadáver do boi.

Ainda assim, FIQUE CALMO.

Sim. Finalmente, você entrou em uma faculdade.

PARABÉNS!

Mais alguns anos de cadeira desconfortável. Só para garantir.

Mas agora você não precisa ficar sentado nela durante tanto tempo. Não é preciso. Seu espírito já se dobrou. Possivelmente, ele, seu espírito, está sentado neste momento, suportando alguma situação insuportável, mesmo quando você está em pé.

Bem calmo.

É bem provável que essa faculdade em que você entrou tenha como slogan algo semelhante a “preparamos para o mercado” – ou variações disso – com a foto de um modelo sorridente abaixo.

Não confunda: o modelo sorridente não é um estudante da instituição, mas os dentes daquele sorriso – enganosamente não pontiagudos – são o mercado.

Para as fachadas mais humanas, o slogan é algo como “preparamos para a vida” – ou variações disso. Que, considerando que vida e mercado hoje são quase sinônimos, dá na mesma.

“Preparamos cidadãos” – e seus equivalentes – quer dizer “ensinamos você a usar o Procon”. Porque, no mercado, o bom cidadão é o consumidor. Talvez a única vez que você tenha questionado o sujeito que fala coisas desinteressantes lá na frente tenha sido dizendo algo como: “Ei, eu pago o seu salário! Sou um consumidor!”. Parabéns, você aprende rápido.

Pois se você é incapaz de consumir, não é um cidadão de primeira classe. Talvez nem seja um cidadão. É preciso que você tenha algum passivo com as bandeiras de cartão de crédito, uma coleira sobre a qual poderíamos falar por outros tantos parágrafos se tempo tivéssemos.

E o mercado pede que você seja um cidadão. E o máximo a que o seu questionamento será capaz de chegar irá até estas três letrinhas: SAC (Serviço de Atendimento ao Consumidor).

Se as empresas quisessem lidar com pessoas, colocariam gente de verdade atendendo aos telefonemas. E não gravações ou outras pessoas lendo scripts e preparadas pelo mercado.

Por isso, o mercado – de olho no futuro – cola sua bunda à cadeira desconfortável durante horas.

Para aprender a suportar situações insuportáveis, respeitar a autoridade e para nivelar sua criatividade tão aceitavelmente quanto a volúpia de um gato castrado.

Para que assim, um dia, você possa ser um colaborador (empregado) e, só então, consumir: realimentando o processo.

Eu sei que, aos cinco anos de idade, é difícil entender o que está acontecendo.

Mas peço que, por alguns instantes e nos seguintes e nos seguintes e nos seguintes, você FIQUE CALMO.

Em alguns anos você vai aceitar tudo perfeitamente e nem vai pensar mais nisso.

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