A perda no corpo

Como as dores do perder se manifestam em nossas estruturas físicas e emocionais

Falta algo, algo que estava e não está mais e, irrecuperável, nunca mais estará.

A perda pode, então, ser vista como um vazio, como o oco pelo qual o vento frio assovia e faz tremer: as imagens, os afetos, as palavras nos atravessam sem efeito, como se fôssemos fantasmas.

Pode ser a perda esse buraco agora repleto, mas preenchido pelas pedras irregulares ora sem vida e sem calor do porto de onde se viu o navio zarpar. Ou a catedral, antes sonora, transmutada em uma piscina de veneno ácido.

A perda pode estar nas mãos que buscam sem rumo o tato do veludo e do aconchego não mais existente, pulsando doloridas, abrindo e fechando, na artrose amarga do rancor, como plantas carnívoras à espera da mosca.

E que, então, se agarram na primeira chance de segurança, incapazes de soltar sob o medo do afogamento, ainda que esse amparo seja um cacto, cheio de espinhos.

E, uma vez, a muito custo soltas, os braços se projetam novamente como anêmonas, sem sentido, desajeitadas, ao sabor das correntezas e a derrubar os copos d’água pela mesa.

E esses braços também podem se fechar sobre o peito. Que também se contrai como uma concha encalacrada, recusando os abraços legítimos que, porventura, se encontrem no caminho.

Pois o medo de perder novamente é maior do que a necessidade premente de encontrar.

E os ombros. Ou se curvam para frente para sustentar sobre eles o peso negativo e paradoxal da perda, carregando as ossadas de todos os ancestrais. Ou se postam para trás para projetar um tórax cheio de ar e vazio de sentimentos que, na perda, se afirma.

Afinal, a perda nos contorce em direções diversas, roubando a espontaneidade da vida.

A perda está no diafragma atrofiado que, ainda assim, faz o máximo de esforço, usando mais energia do que a que tem disponível, para encher os pulmões de ar, como balões prestes a explodir. E se recusa a expulsar todo o alento, pois algo deve ficar: quem perdeu quase sempre irá querer que algo fique para si, ainda que sejam os resquícios já usados pela respiração. A entrega, depois da perda, não é total.

A perda fica evidente na ausência do chão e os pés se assentam inseguros sobre a terra, como se o corpo fosse despencar a qualquer momento em direção ao centro do planeta. As pernas, talvez, se enrijecem como paus, pois já não se confia no pilar muscular que antes sustentava o que, ainda, não estava perdido. Pois, apesar de tudo, a perda veio, o chão sumiu, os pilares romperam e caiu-se ao chão. A perda pode estar no medo da queda.

Os quadris e o abdômen perdem a doçura e a ondulação que lhes seria natural. A perda leva consigo a dança e a musicalidade do corpo. E os lábios, possivelmente, nem mais saibam assoviar ou nem tenham tido a chance de aprender, pois a boca se torna um instrumento rígido e sem cordas sobre o pedestal de gesso do pescoço. Os dentes trincam de uma raiva que não chegou a florescer em criação.

A cabeça, enfim, repousa – em um fluxo imparável de pensamentos – sobre tal arquitetura. A cabeça, isolada, tentando ignorar a desolação que se passa abaixo do maxilar. Mais abaixo, só esse veículo capenga para tudo o que se pensa que a vida é (e que, na verdade, não é).

Os olhos, na perda, podem estar vidrados com medo ou vislumbrando, como num sonho, tudo o que foi e que não é mais. Ou tudo que poderá ser quando se reconciliar a perda em outro objeto ilusório que nunca chega. Afinal não é reconciliável.

Ou podem os olhos estar incansavelmente se revirando nas órbitas, como predadores, em busca do perdido que já nem se sabe, não se lembra, não se entende mais o que é. Ou, ainda, simplesmente, mortos.

E, no entanto, tudo de que precisamos para seguir já está conosco. A perda é uma ilusão em que acreditamos com fé tamanha que ela se faz real em cada gesto, em cada respiração, em cada músculo, em cada tripa, em cada olhar.

A perda é visível no corpo. Ela nos faz perder muito mais do que realmente perdemos, como no versículo que diz que aos que não têm até o que não tem lhes será tirado (Lucas 19:26).

Acima de tudo, a perda nos deixa a herança bolorenta do medo de perder de novo e, com isso, nos rouba até mesmo a capacidade de entregar. Entregar: a nossa maior potência.

A que, alguns, chamam de amor.

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