Uma história sem final feliz

Se uma criança, na primeira infância, logo após ser alfabetizada, tira notas excelentes nas provas de redação, chama a atenção dos professores pela qualidade de suas frases, impressiona pelo nível de leitura, o que acontece? Provavelmente, nada

Há uns bons anos, eu trabalhava em uma agência bancária na periferia de Mauá. Fiz amizade com a turma de lá: o Sabiá, dono de um restaurante de comida do Norte, o seu Gentil, dono do material de construção. Nunca soube o motivo do apelido do primeiro, mas sempre desconfiei ter origem na marca de cachaça. No caso do seu Gentil, não era apelido, mas nome, e que moldara sua personalidade: a todo instante, o meu amigo derramava uma gentileza que, de tão excessiva, às vezes irritava. Ao me contar de um cliente que fora ao seu comércio trocar um produto já vencido, muito tempo depois da compra, eu me exasperava: “aí não pode, seu Gentil”. Delicadamente, ele me explicava que o melhor era assumir o prejuízo e manter o cliente. Provavelmente, estava certo.

Lembro do pessoal da Lotérica, do gerente do banco concorrente, do mecânico. Da diretora da escola estadual, do chefe dos bombeiros, da associação de moradores. São lembranças carinhosas, que me vêm sem conflitos. Nossas vidas se cruzaram, nossas vidas seguiram. Contudo, há um personagem no qual nunca deixei de pensar sem me incomodar, ainda que passados quinze anos.

Certa vez, ao chegar para o trabalho, reparei que o segurança da agência já estava almoçando. Eram nove da manhã. Comentei, indiscreto, sobre o estranho hábito de almoçar tão cedo. Como resposta, ele me explicou sua rotina: acordava cedo e ajudava na abertura de uma padaria, às quatro. Em seguida, fazia a segurança da montagem de uma feira de rua, vigiando enquanto descarregavam o caminhão. Depois, o banco. Apanhava então o filho na escola e deixava no primeiro treino, futebol de campo. Fazia entregas enquanto o filho jogava. Na sequência, acompanhava o filho para um segundo treino, desta vez, futebol de salão. Enquanto o filho ensaiava passes e lançamentos, ele fazia a segurança do clube.

Como seu dia começava muito cedo, a hora do almoço também era antecipada. Tal rotina sacrificante tinha um propósito: o filho seria jogador de futebol. Quando o menino tinha onze anos, havia notado sua especial habilidade. Os parentes concordaram. E também os vizinhos. Aquela sequência de confirmações foi a senha que o levou a dedicar sua vida ao projeto, sinônimo de prosperidade para toda a família.

Ele me explicou que não bastava o talento com a bola. Era preciso relações — e dinheiro. As diferentes fontes de renda o ajudavam a custear nutricionista, academia, alimentação. E a pagar para o filho ser escalado, pois só assim teria uma chance. Os outros jogadores mirins, seus concorrentes, recebiam investimentos pesados, de nomes famosos. Contrapor tais interesses exigia muito; era como funcionava.

O final da história não é feliz. Apesar de todo o esforço daquele pai, quando o jogador atingiu os dezessete anos, houve um problema em seu crescimento. Algo com a posição dos joelhos, o modo como a tíbia havia crescido, que o tirou de campo. A carreira terminou antes que a família pudesse receber um retorno mínimo de todo aquele investimento. O menino terminou atrasado o colegial e, uma vez formado, foi trabalhar com entregas.

O caso que aqui relato não é especial, mas sim bastante comum. Ofereço uma estatística ao leitor: de sete mil crianças cujos pais entram na mesma rotina de treinos, olheiros e clubes do meu colega de trabalho, apenas uma se torna profissional. Ou seja, não estou falando de um caso especial, e sim de um dos seis mil, novecentos e noventa e nove que não são escolhidos para vestir a camisa de um grande clube.

E por que nunca deixe de pensar neste caso? Vejam: certamente o leitor conhece alguém na mesma situação. O Brasil é uma fábrica de grandes jogadores porque temos uma enorme base em movimento. Contudo, quem já ouviu falar de uma família que se sacrifica para formar um escritor? Se uma criança, na primeira infância, logo após ser alfabetizada, tira notas excelentes nas provas de redação, chama a atenção dos professores pela qualidade de suas frases, impressiona pelo nível de leitura, o que acontece? Provavelmente, nada. Jamais escutei histórias de um pai e uma mãe que acumulavam horas extras para custear um curso de escrita criativa. Já deve ter acontecido? Com certeza, pois acontece de tudo neste mundo. Porém, certamente é um caso raríssimo. Comparado com o futebol, um número ínfimo.

Nunca deixei de pensar que se meu colega de trabalho, o segurança, tivesse aplicado seus esforços em aulas de português e matemática, de inglês ou programação, o resultado teria sido melhor. As notícias sobre o estilo de vida e os excessos dos jogadores mais bem-sucedidos, seus salários, festas, carros, mansões, impulsionam o imaginário popular, os sonhos de fortuna. Ter um filho jogador de futebol equivale a acertar na loteria. Porém, existem muitos outros caminhos. Crianças talentosas em qualquer campo podem ajudar suas famílias a mudarem de patamar. É curioso que não se visualize o sucesso financeiro atrelado a uma carreira de escritor, ainda que alguns no mercado recebam adiantamentos na casa dos três dígitos.

Muito se fala sobre a necessidade de aumentar o número de leitores no Brasil, sobre os impostos do livro, sobre o número de livrarias e sua concentração no Sudeste. Sobre abrir mais bibliotecas públicas, menores e pulverizadas, conectadas à comunidade. Sobre o orçamento de Cultura. Sobre os editais para o mercado livreiro. Tenho fé que nosso mercado vai se expandir, ano a ano, porque vejo a empolgação com que muitos jovens leitores falam dos lançamentos. Quando estaremos no ponto ideal? Quando estaremos satisfeitos? Provavelmente, nunca. Porém, da minha parte, quando eu souber de uma família que se mobiliza para formar um escritor, crente que é esta a chave para uma mudança de vida, saberei que estamos próximos.

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