Confesso: errei

Por duas décadas, recusei as simpatias de Ano Novo. Conversando com uma tradutora do esloveno, percebi que estava errado.

Minha família sempre gostou de simpatias de Ano Novo. Tenho dúvidas se alguma vez elas deram certo. Minha mãe, claro, vai responder que sim, e me chamar de descrente: todos estarem bem, com saúde, é a maior prova. Meu pai, notei depois que cresci, prefere participar a argumentar contra. É mesmo mais fácil. Tenho memórias muito antigas dos meus parentes pulando as sete ondas do mar, equilibrando-se sobre o pé direito na hora da contagem regressiva, comendo uma colher de lentilha. Tem mais: sementes de romã à tarde, folhas de louro na carteira, cores especiais para as roupas íntimas — amarelo para dinheiro, vermelho para o amor. E nada de jantar peru ou frango no primeiro de janeiro, pois as aves ciscam para trás! Novas superstições se acrescentam a cada ano e nenhuma é abandonada.

Lembro de um fim de ano, na praia, em que inventaram de mostrar a bunda para a lua — após saltarem as sete ondas, com o pé direito, comendo lentilha. Tios e tias, primos e primas procuraram um local discreto, que permitisse ao afortunado reflexo lunar incidir diretamente nas nádegas, porém sem que os quarenta mil curiosos que estavam na praia dessem uma espiadinha. Em algum momento, encontraram o ângulo certo, lua de um lado, turistas do outro, três, dois, um, e todo mundo abaixou a calça, subiu a saia, desceu os shorts por alguns segundos, que foram suficientes para garantir a sorte daquele ano. Menos eu. Talvez tenha sido naquele dia que começou minha adolescência, com a escolha de uma sorte que fosse apenas minha.

Passei a recusar os costumes da família, criei tradições pessoais, para desespero da minha mãe, que temia me ver atirado em um fosso de azar — ou “má sorte” (ela não diz “azar” para não atrair). Ao invés da lentilha e das folhas de romã, decidi não comer carne alguns dias antes da ceia. Adotei um banho de sal grosso, emprestado das tradições africanas. Assisto à missa na tarde do 31 de dezembro. Lavo os chakras indianos. Decidi que fogos de artifício eram obrigatórios. E, para apoiar meus planos literários, passei a iniciar o ano com a leitura de um clássico, obrigatoriamente uma obra maior que um tijolo, um dos títulos que todo mundo conhece, mas pouca gente de fato leu da primeira à última página.

Nos primeiros dias do ano, enquanto algum atrasado ainda solta fogos e estão todos de ressaca, pesquiso traduções da “Odisseia”, me decidindo entre Frederico Lourenço, Odorico Mendes ou Trajano Vieira. Encomendo a obra e aguardo ansioso pela entrega enquanto, nas redes sociais, cada qual exibe a própria família toda vestida de branco. E abro feliz o pacote e me sento para ler enquanto os noticiários ainda exigem imagens da queima de fogos em Copacabana, ou do réveillon dos famosos, ou do que os videntes esperam para o ano que se inicia. O ano é novo, mas começa sempre igual.

As boas edições trazem notas do tradutor, comentários do processo. E, claro, uma diagramação confortável para a leitura. Joyce foi lido na tradução do Caetano Galindo. Dom Quixote, li na tradução de Ligia Cademartori, porém tinha à disposição a tradução de Ernani Ssó, Sergio Molina, António Feliciano de Castilho, entre tantos outros. Para ler Shakespeare, não faltam tradutores, entre eles o grande Machado de Assis, que, dizem, traduzia dando sempre uma ajudinha para o autor original.

Comentei recentemente sobre esse hábito com a Mojca Medvedšek, tradutora do esloveno para o português. Falei da minha família no Ano Novo, do hábito de ler um clássico (comecei 2023 com “Guerra e Paz”, na tradução de Rubens Figueiredo), falei despretensiosamente sobre a importância de escolher uma boa tradução ao ler um clássico. Escolher o tradutor certo, pesquisar o processo. Ela se surpreendeu. Não sabia que haviam tantas traduções das mesmas obras para o português. E me explicou que, na Eslovênia, há em geral uma ou outra versão, e que vem do inglês ou francês. As traduções diretas são raras, uma dezena de traduções disponíveis é um utopia. Os eslovenos, em geral, estão privados de conhecerem as palavras do príncipe da Dinamarca ou as tiradas do Sancho em seu próprio idioma. Uma tragédia!

Fiquei intrigado com os comentários da Mojca e escrevi para tradutores de outros idiomas, como o finlandês, o letão e o basco, com quem trabalho na editora Rua do Sabão. Eles confirmaram a informação. Nunca havia me dado conta de que utilizarmos um idioma que está entre os dez mais falados no mundo, por mais de 250 milhões de pessoas, nos traz justamente esta vantagem. Para além da rica literatura brasileira, temos uma gama imensa de traduções à disposição.

Vou confessar algo: eu gosto dos entusiastas pelo Brasil. Quisera eu ser um deles. Meus avós, talvez por conta da infância varguista, eram ufanistas. Batiam no peito para dizer “o quinto maior território mundial”, “as praias mais lindas do mundo”, “a maior floresta tropical do planeta”. Quando descobriam algo novo sobre o País, logo incorporavam: “o único País a ganhar cinco Copas do Mundo”, “o maior rio do mundo”, “a maior biodiversidade”. E, ocasionalmente, diziam que o português era o idioma mais bonito do mundo, o que, pelo sim, pelo não, sempre me pareceu verdade.

Se nunca vi grandes vantagens em correr por aqui o maior rio do mundo (faria diferença se fosse o segundo?), ou termos a maior biodiversidade (se fosse a terceira, porém melhor preservada, não seria melhor?), fiquei encantado ao perceber uma vantagem direta no nosso idioma. É decisivo! Faz toda a diferença, para a riqueza do português, o imenso número de falantes. Para os escritores, estudiosos, para os leitores, ter tantos livros é fundamental! E passei a dar razão aos meus avós em tudo. Claro que é maravilhoso termos o rio Amazonas por aqui. Vamos cuidar dele! E a biodiversidade é um patrimônio nacional, como a língua portuguesa, os idiomas indígenas, as praias, as cataratas e o enorme território! Viva!

Foi minha avó que começou com as simpatias de Ano Novo, e viveu até o último dos seus dias fazendo o que bem entendia, do jeito que queria, sem se incomodar com ninguém. De bem consigo, de bem com o mundo. Satisfeita com seus galhinhos de arruda atrás da orelha, um pote de sal grosso atrás da porta da frente, queimando um incenso quando alguém olhava torto. Cantando Nelson Gonçalves pela casa, se emocionando com o Hino Nacional e reafirmando que o português era o idioma mais bonito do mundo. Talvez eu estivesse errado, por todos estes anos! Talvez eu tenha perdido diversas oportunidades pelo tantinho de sorte que deixei escapar ao recusar pelas últimas décadas — Céus! — a colher de lentilha, as folhas de louro e a cueca amarela. Levo as mãos ao rosto e penso que meus primos, se estão melhor de vida, certamente é porque suas nádegas foram corretamente iluminadas pelo refluxo lunar nos últimos vinte anos: uma vantagem inegável!

Cada pedaço de peru, degustado no primeiro de janeiro, de repente embola meu estômago, explicando o dia em que perdi os óculos, aquela vez que me atrasei na prova, quando desencontrei de um conhecido por apenas um minuto.

Tomei uma decisão: a partir de agora, vou participar de tudo. Quem sabe, se eu passar a dobrar a aposta — duas colheres de lentilha, o dobro de fogos de artifício, pular a noite inteira só na perna direita —, eu recupere o tempo perdido em cinco ou seis anos. E a lua, claro! Em uma década, no máximo, tudo se ajeita. Vou até passar a cantar o clássico de Francisco Alves, “que tudo se realize, no ano que vai nascer…”, antes de mais nada para agradecer pelo nosso lindo português. Porque esse português é bonito… Ah, como ele é bonito…

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima