Ser religioso não é desculpa para ser desrespeitoso

Adultos desrespeitam pais e familiares ao tentar pregar para crianças. É hora de deixar claro que esse tipo de desrespeito é inaceitável

Minha mãe era uma pessoa muito religiosa. Católica, ela tinha tanta fé que as pessoas do bairro costumavam pedir que rezasse por elas quando estavam doentes. Era chamada especialmente quando as pessoas tinham problemas musculares ou ortopédicos. Depois da morte dela, meu pai passou anos recebendo pessoas na porta de casa que queriam uma oração e saiam tristes de saber que não podiam contar com a fé da minha mãe.

Minha mãe também era admiradora da fé evangélica, muito embora fosse desde sempre católica. Ela gostava de ver aquele povo bem arrumado que ia em família aos cultos das igrejas perto da nossa casa.

Muito embora eu não tenha herdado a fé da minha mãe, herdei o respeito e admiração que ela tinha por pessoas de fé. Religião para mim sempre significou respeito, união e coletividade.

Pensei nisso quando outro dia passei pela experiência desagradável de ter que aguentar discurso de ódio disfarçado de fé de um motorista de Uber. Quando o moço começou a falar sobre levar pessoas para o grupo dele e de como Deus mantém as pessoas no “caminho certo”, interrompi educadamente e disse que não me sentia confortável em discutir religião.

O moço, claro, ignorou meu pedido e mergulhou num discurso que culminou com ele dizendo que não se importa que a pessoa seja gay, mas que tá na bíblia que essas pessoas vão para o inferno. E que o problema delas (homossexuais, bissexuais etc) é com Deus, não com ele. Nesse momento voltei a pedir que ele ficasse em silêncio, o que ele fez após alguma insistência.

Quem já pegou um motorista de Uber desagradável sabe a situação ruim e complexa na qual nos vemos. É uma pessoa que muitas vezes nos buscou na frente de casa ou do trabalho. E que está no carro contigo por um período de tempo. No meu caso havia também o agravante de eu estar com meu filho.

Já seria uma situação ruim se não fosse recorrente. E, pior, na minha experiência como mãe, a liberdade com a qual pessoas religiosas se impõem e impõem suas crenças é particularmente insistente com crianças.

Digo isso com a experiência de quem tem três filhos e já os viu passar por diversas escolas, da educação infantil ao ensino fundamental, em instituições públicas e particulares. Eu nunca matriculei meus filhos em escolas devocionais, aquelas que são ligadas a igrejas e/ou grupos religiosos. Como mãe, considero religião uma questão íntima e familiar.

No entanto, isso não impediu professores e funcionários de escolas de fazerem meus filhos rezarem antes de refeições e de compartilharem sua visão particular do mundo com crianças pequenas sem nem a minha permissão nem conhecimento. Eu só sou informada dessas incursões teológicas quando converso com meus filhos e quando o que é dito na escola acaba gerando situações com as quais tenho que lidar.

Como a vez em que tive que explicar para minhas filhas que não, elas não iam poder ir na igreja da moça que eu não conheço e com quem não tenho a menor intimidade. Não, não “vai ser divertido”. E por favor, estranha, não fale mais com minhas filhas.

Que mal tem ensinar uma criança a rezar? Bom, para começo de conversa é um desrespeito aos desejos da família. Se eu quisesse que meus filhos gastassem o precioso tempo que têm na escola para rezar eu teria matriculado elas em escolas católicas. Aliás, nunca é demais lembrar que falar com crianças longe dos pais pra combinar coisas que não estão combinadas com os pais é um comportamento inaceitável e que beira o questionável.

Como a escola pode ter um bom relacionamento com as famílias das crianças se não respeita algo tão básico? No caso dos meus filhos já tive que conversar e acalmar meus filhos por algo que uma religiosa “bem intencionada” disse sobre a morte do meu pai. Lidar com uma morte na família quando se tem crianças pequenas já é complexo o suficiente sem a “sabedoria” não solicitada de outros.

O Brasil é um país em que há liberdade religiosa. Isso pressupõe liberdade de professar sua fé, de culto. Em muitas religiões esse “professar” inclui ações de conversão de outros. Mas a liberdade religiosa não confere a adultos o direito de importunar pessoas de outros credos, muito menos o de tentar doutrinar crianças pequenas com as quais não têm qualquer relacionamento.

No entanto, o esforço de conversão das religiões cristãs no Brasil tem sido pouco respeitoso com a liberdade religiosa das famílias e se impõe em todo e qualquer lugar. Além disso, insiste em criminalizar comportamentos e realidades de pessoas de fora da esfera de influência da igreja – caso de pessoas da comunidade LGBTQIA+ – mesmo quando não foram chamados a se manifestar.

Vemos isso quase que diariamente entre os representantes religiosos eleitos para a Câmara de Curitiba, que já fizeram comentários em plenário criminosos, como relacionar homossexualidade com pedofilia e a sexualização precoce de crianças. Cobertos pelo manto da religiosidade eles se veem no direito de ofender outras pessoas gratuitamente, pessoas que 1) não pediram conselhos espirituais/religiosos, 2) não estão ofendendo a liberdade religiosa do interlocutor e 3) tem tanto direito quanto o resto da população de viver e buscar a felicidade da maneira que entender apropriada.

Naquele dia, no Uber, ouvindo meu filho de 10 anos ser exposto comentários violentos disfarçados de teologia algo em mim chegou a um limite. Não dá mais para tolerar a falta de respeito dos cristãos com a liberdade religiosa dos outros. Lugar de sermão e pregação é na igreja, não na escola, nem no Uber, no condomínio, na fila do pão ou no ponto de ônibus. Seremos um país mais civilizado se isso for respeitado.

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