A liberdade intransigente esconde a lei do mais forte

Para a correta interpretação da palavra “liberdade”, não se pode dispensar a contextualização social na qual ela se expressa

Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda. Por mais poético que Cecília Meireles tenha tido sucesso em prosar em suas brilhantes palavras marcadas na eternidade, certamente não teria sido capaz de prever a tamanha plasticidade que Liberdade viria a assumir na contemporaneidade.

A maleabilidade moral e fragilidade na identidade ética de setores do liberalismo lograram progressivo sucesso na completa desconfiguração teórica e pragmática no sentido semântico do termo. Observe que para correta interpretação da Liberdade, não se pode dispensar a contextualização social na qual ela se expressa.

Não de outra forma poderia se dissecar a hermenêutica da Liberdade, sem reconhecer a natureza humana enquanto evidentemente social. Nisto, parece-me, que nem mesmo o mais lunático dissidente da horda de liberais teria capacidade de discordar. Nascemos, crescemos e nos desenvolvemos, por óbvio, em contextos de trocas interpessoais, em complexo emaranhado de relações humanas, com intercâmbio de informações, finanças, experiências, sentimentos e pensamentos.

Émile Durkheim, tristemente abandonado por tantos discípulos de Mises e companhia, discorria sobre a natureza evolutiva do ambiente social, denominando a solidariedade mecânica – como tradições, hábitos e a moral cotidiana – e, paralelamente, uma progressiva solidariedade orgânica – baseada na interdependência oriunda da progressiva especialização do trabalho, que aproxima realidades anteriormente completamente desconexas de forma dinâmica e complexa.

É bom que se diga aqui, inclusive, que não se pretende criticar o desenvolvimento do capitalismo, tampouco desprezá-lo ou mesmo flertar com determinações socioeconômicas que dele divirjam. Aqui, meus caros, os senhores leem as palavras de alguém aberta e declaradamente favorável ao capitalismo e, observem, que não coaduna com qualquer suposição de incompatibilidade entre a lógica capitalista e a defesa da dignidade da pessoa humana, desde que condicionado a aparato estatal capaz de dirimir abusividades flagrantes.

A liberdade, quando irrefreada – tal como a tolerância, emprestando do paradoxo de Karl Popper – detêm natureza claramente autofágica, insustentável e, se ilimitada, dá condão à sua própria destruição. A liberdade, novamente, exatamente como a tolerância, se irrestrita for, está fadada a pavimentar o caminho para sua própria lápide.

A própria concepção de coletividade enquanto participante da identidade individual, isto é, o reconhecimento da pluralidade social como integrante da construção do indivíduo, imerso em meio pelo qual é influenciado e também influencia, é oportunamente evidenciável em vários fenômenos cotidianos.

O arcabouço dialético da linguagem – mecanismo socialmente convencionado pelo qual nos expressamos, a riqueza cultural dos povos – como ilustração do baluarte temático e histórico de raízes comuns, a religião – como proposta coletiva e compartilhada de conexão com o divino, o conhecimento escolástico e técnico-científico – como pedaços colaborativamente desenvolvidos que tomam forma passo a passo através de gerações.

Somos, de tantas formas, somatório de variáveis complexas, dentre as quais de forma inequívoca se estabelece a influência da coletividade que nos antecedeu e, de igual forma, a que nos cerca atualmente. É válido lembrar, inclusive, que com toda licença aos cientistas sociais, é raro na antropologia humana ser capaz de evidenciar de forma tão patente uma conclusão lógica como essa.

O raciocínio sem asseios da Liberdade irrestrita é de tremenda irresponsabilidade dogmática, ao passo que se desafia a estabelecer na individualidade protagonismo ilimitado de autonomias, não somente menosprezando o conjunto de elementos estruturalmente coletivos – como o filho ingrato que rejeita o próprio pai –, mas essencialmente desencadeando consequências que ofendem não somente a pluralidade no sentido de consciência social, mas também a totalidade de individualidades em suas áreas de existência particulares.

A história do Direito, enquanto forma de organização social convencionada ao tempo, é escandalosa evidência desta linha de raciocínio, passível de ser compreendida até mesmo pelos mais toscos e descerebrados liberais. Explico: o crime enquanto entidade que proporciona repulsa e enseja condenação moral, não somente teve sua identidade aperfeiçoada aos respectivos ambientes sociais ao decorrer do tempo, como também foi objeto de dinâmicas atribuições de pena, cada qual proporcional ao seu tempo e elencada dentro de parâmetros de razoabilidade conforme a leitura da identidade social da coletividade e também pela percepção dos indivíduos – ambos mutuamente influenciáveis.

Observe que o adimplemento da Liberdade irrestrita é conceitualmente insustentável ao passo que seu exercício, quanto mais progressivamente difuso, impede a perpetuação de seu avanço, eis que – como a história do Direito nos ensina – a realização de ações ao bel prazer hedonístico do indivíduo é capaz de atingir difusamente a totalidade de outras individualidades, as quais se tornam reciprocamente incapazes do exercício da liberdade plena.

A inobservância dos tipos criminais, a exemplo do sujeito que pratique um homicídio, roubos ou demais ilicitudes, viola simultaneamente os interesses da coletividade, mas também incapacita o próximo parcialmente ou integralmente ao exercício de sua Liberdade.

Trata-se, em suma, de raciocínio autolimitado. Ao passo que determinado indivíduo se distancia do respeito aos interesses coletivos, torna-se ele coautor de ações que cerceiam o exercício de sua própria Liberdade sadia e, em última ratio, cúmplice do raciocínio simplista que inviabiliza sua própria Liberdade.

A concessão de fragmentos do raciocínio plenamente individual e autocentrado da condição humana, isto é, a aceitação que normas de convivência beneficiam mutuamente os indivíduos e, portanto, os capacita ao exercício de Liberdades progressivamente mais complexas e interdependentes, é a pedra fundamental da própria sociedade.

Supor que determinado indivíduo seria capaz de atingir, de forma totalmente isolada, sem acesso a qualquer auxílio dos subprodutos das ações de indivíduos que o antecederam ou de seus contemporâneos, seria de tosquidade antológica, sendo, portanto, evidente que a individualidade ganha camadas inéditas do exercício da Liberdade ao passo que reconhece na coletividade seu valor e dela compartilha – recebendo e entregando – suas influências.

Nesta linha, considero um conglomerado de lunáticos os sujeitos que, de forma arrogante, pretensiosa e flagrantemente burra se autointitulam liberais – especialmente aqueles que convivem nos extremos particularmente ignorantes desta míope filosofia.

Ora esboçado as preliminares desse raciocínio – e tão somente assim – é possível introduzir um segundo passo de pensamento, qual seja que a ideologia pueril do exercício irrestrito da Liberdade, esta violadora dos interesses coletivos, não somente é autofágica, insustentável e autolimitada, como também configura discurso particularmente interessante e vantajoso para determinadas parcelas privilegiadas da sociedade.

A Liberdade intransigente, esta que alcunho como cega ao reconhecimento da coletividade enquanto elemento indispensável à construção de etapas progressivamente mais complexas – somente obtidas em sociedade – da própria Liberdade, é aquela que subversivamente mina o próprio exercício da Liberdade daqueles particularmente suscetíveis a tê-la sequestrada. A Liberdade intransigente é o braço ideológico da lei do mais forte, no qual ante a mentirosa proposta de conceder maior autonomia aos indivíduos, em verdade, a silencia.

O sofismo de que aumentando ilimitadamente a Liberdade individual seríamos capazes de promover o bem-estar e tornar os sujeitos mais felizes, livres e aptos ao exercício de suas potencialidades, ignora a assimetria patrimonial e de protagonismo em zonas de influência de poder econômico, fazendo com que, ante a instalação da Liberdade intransigente, possam os mais fortes ignorar os sistemas de freios e contrapesos – aqui, essencialmente, o Direito – e agirem de forma integralmente voltadas a si próprios.

Entretanto, ante a acumulação desproporcional de poder nas esferas econômicas, sociais e políticas – tal como descrito por Foucault – o detentor da égide de determinada força é capaz de suprimir a viabilidade de realização dos interesses dos demais, primando exclusivamente pelo próprio bem de curto prazo e, assim, dando fim às demais Liberdades individuais.

Há que se diga, ainda, que a vigência da Liberdade intransigente prejudica, no longo prazo, até mesmo o exercício das potenciais camadas mais complexas da Liberdade dos maiores detentores do poder, eis que, mesmo os mais oligarcas e influentes, dependem para longitudinal e sustentável desenvolvimento da facetas do exercício da Liberdade em suas passíveis descobertas, da coexistência com coletividade sadia, em sinergismo apagado pela Liberdade intransigente.

Não é difícil enxergar que ao passo que a Liberdade intransigente progride, se concentra a capacidade do exercício da legítima Liberdade na mão de montante progressivamente escasso de indivíduos.

É entretanto, extremamente difícil de fazer com que parcelas libertárias da população – tão adeptas à fragilização dos limites da Liberdade – observem que serão eles próprios as vítimas do adimplemento da Liberdade intransigente. Perceba que não questiono a assimetria de poderes políticos, intelectuais, ideológicos ou de capitais – legitimamente aqui não se pretende uma crítica ao capitalismo ou a capacidade do atual modelo econômico, quando bem regulado pelo Estado, de respeitar a verdadeira Liberdade –, mas sim ao mecanismo no qual parcela ínfima da sociedade detentora destes poderes é capaz, através do exercício plenamente individualista de suas vontades, seja capaz de silenciar a Liberdade da coletividade.

Esboçado as etapas que compõem o âmago do meu raciocínio, é importante ainda frisar que a Liberdade intransigente dificilmente seria instalada de forma ampla através de mecanismos súbitos, a exemplo da revogação dos poderes constitucionais do povo ou da completa ruptura democrática. A desconstrução do arcabouço de proteção social da coletividade se dá de forma sutil, passo a passo, de forma imperceptível à identificação cotidiana e para análises rasas.

A etapa de propagação ideológica da Liberdade intransigente como benefício coletivo – naturalmente uma incompatibilidade racional – é essencial para que parcelas desta coletividade estejam progressivamente mais dispostas a renunciar das redes de proteção social das quais eles mesmos se beneficiam e, paralelamente, se provarem integralmente indiferentes às ofensas das garantias coletivas de terceiros.

Observe que, em se tratando de tema evidentemente complexo e historicamente construído, não é de se supor que se consiga avaliar a intrincada estrutura de proteção social e, logo em um primeiro momento, compreendê-la. A percepção das repercussões em suas macro e microdinâmicas exige estudo aprofundado, mas não menos necessário.

A paulatina fragilização deste arcabouço de proteção social se aproveita da complexidade estrutural dele próprio, eis que, novamente em um primeiro momento, pode não ser tão evidente o desencadeamento de consequências capazes de vulnerabilizar os interesses coletivos e, consequentemente, dar margem à Liberdade intransigente.    

Daí o meu ceticismo particular em avaliar medidas que se proponham ao bem comum, mas que operem enquanto fantoches travestidos da Liberdade intransigente.

O Estado, meus caros, se configura enquanto elemento historicamente indispensável à manutenção dos interesses da coletividade e, ainda, absolutamente insuficiente ao êxito da Liberdade legítima se dirigido por partidários da Liberdade intransigente.

Toda minha dialética, até o momento, se dedica a demonstrar a brutal desonestidade intelectual que testemunhei em passado recente. Travestido pela batina do magistério, travei discussão com determinado sujeito que não somente vendia as falsas maravilhas da Liberdade intransigente, como o fazia como se verdade objetiva esta fosse.

Em que pese toda minha sistemática de pensamento, não a atribuo caráter de verdade universal. Diferentemente de meu tosco interlocutor, que ultrajava o sacerdócio da docência em suas palavras, não tenho qualquer pretensão de vender esta leitura como fato imutável e correto.

O magistério, meus caros, exige responsabilidade intelectual. Há campos do conhecimento que toleram maiores renúncias da abstração de pensamentos, isto é, verdades objetivas pouco mutáveis. As exatas, por exemplo, dão espaço para que determinado professor possa afirmar – sem grande margem para discussões – que uma função de primeiro grau obedece comportamento linear – fato dado pela vida humana, um comportamento matemático universal.

A análise econômica do Direito, entretanto, pertence a campo absolutamente subjetivo do conhecimento humana, não havendo que se falar em interpretação invariavelmente correta ou certamente equivocada. Análises podem ser rebatidas, aprimoradas, descartadas ou contrapostas ao decorrer do tempo.

Neste sentido, a apresentação da percepção econômica do Direito obediente à Liberdade intransigente enquanto verdade universal e realidade fática configura imensa desonestidade intelectual, típica dos mais vis senhores de suas razões, incapazes de trazerem para si indispensável ceticismo ao crescimento intelectual e, ainda, propagando às mentes nas primeiras etapas da formação intelectual, linhas de pensamento que, independente de antagônicas ao meu raciocínio aqui descrito, como se verdades absolutas fossem.

É, para mim, particularmente notável que os partidários da Liberdade intransigente não sejam somente vis no conteúdo em que defende, mas com dantesca frequência também na própria forma de fazê-lo.

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