Covid-19, desigualdade e política de morte

A questão é como esta sociedade e aqueles que a governam se portam diante de uma situação de pandemia. Seria o caso de buscarmos soluções democráticas e sociais ou seria o caso de deixarmos morrer “cinco ou sete mil pessoas”

Há pouco mais de um mês, tomou conta da mídia nacional a notícia da primeira morte decorrente da covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, no estado do Rio de Janeiro. O vírus, introduzido no Brasil pelas camadas mais abastadas da população, fez, contudo, de uma empregada doméstica de 63 anos, que jamais pisou na Europa ou na Ásia, sua vítima fatal. Por duas décadas, a mulher, idosa, diabética e hipertensa, percorreu mais de 100 quilômetros entre sua casa, localizada na região serrana do Rio, e o Leblon, bairro nobre da capital, onde trabalhava – e dormia num pequeno quarto – de segunda a sexta-feira. Aos finais de semana, voltava para a sua residência. No dia 16 de março, enquanto trabalhava normalmente, mesmo após a declaração de grave pandemia pelas autoridades sanitárias, sentiu-se mal. A patroa, então, ligou para seus familiares e solicitou que fossem buscá-la. Levada às pressas para o hospital, a empregada doméstica não resistiu. Dias depois, buscando respostas para a morte tão repentina, a família foi informada pela empregadora que, após uma viagem de férias pela Europa, havia contraído a covid-19. Por conta disso, isolou-se para controlar a doença e não transmiti-la àqueles incluídos em sua zona de afeto, mas não abriu mão dos serviços prestados pela idosa pertencente ao grupo de risco da covid-19.

O vírus, embora não escolha alvo, ilustra, sobretudo na exigência de isolamento e na letalidade, a seletividade de uma sociedade desigual como a brasileira. Enquanto as classes média e alta seguem a quarentena trancafiadas em condomínios, fazendo encomendas a aplicativos de entrega e assistindo “lives” de seus artistas favoritos para quebrar o “tédio” do home office, empregadas domésticas, motoboys, porteiros e demais serviçais expõem suas vidas em troca de empregos quase sempre informais, assegurando o isolamento confortável e digno dos patrões. Se ao grupo privilegiado o medo é morrer contagiado pelo vírus, ao grupo integrado pela doméstica vítima de covid-19 o temor é morrer de fome.     

A situação acima relatada é apenas uma das inúmeras demonstrações do estado de exceção permanente imposto aos setores vulneráveis ao longo do processo histórico brasileiro. Um estado de exceção não declarado que, nos moldes propostos pelo filósofo Giorgio Agamben, ao se apartar cada vez mais da noção de provisoriedade, revela-se como técnica duradoura de governo em prol dos discursos da segurança e da economia e às custas da relativização/anulação de direitos fundamentais de grupos historicamente discriminados e marginalizados.

No cenário da exceção, a política se apresenta como necropolítica, conceito desenvolvido pelo historiador camaronês Achille Mbembe e que diz respeito ao poder de definir quem deve viver e quem deve morrer, fabricando indivíduos habituados à perda, à existência no limiar entre a vida e a morte, gente cuja vida é supérflua, destituída de valor e por cuja morte ninguém se vê obrigado a responder. Nesse contexto de desumanização e exclusão, nota-se que o Estado brasileiro tem há muito operado por meio do controle, da criminalização e do extermínio de indivíduos disfuncionais ao sistema, ou seja, que não servem à lógica capitalista neoliberal. A exposição à pobreza, as limitações educacionais, a precariedade do acesso à saúde, a subalternalização de saberes, práticas e crenças, são algumas das vulnerabilidades que, ao lado e com o auxílio do sistema penal, caracterizam um projeto genocida em curso desde o “descobrimento”.

Pintura que retrata a chegada dos portugueses ao Brasil no dia 22 de abril de 1500.

Feitas tais considerações, é preciso que se esclareça que o termo “desigualdade” vem sendo utilizado como um sujeito no Brasil, e um sujeito que seria responsável pela pobreza, um sujeito responsável pela diferença de tratamento e acesso propiciado a mulheres, homens e crianças, e que gera os seus próprios resultados. Contudo, precisamos evidenciar que a desigualdade não é sujeito, é predicado! A desigualdade é gerada, especialmente, por processos de exclusão e inclusão elaborados sistematicamente desde o período colonial, por uma sociedade definida pela ideia do capitalismo produtivo e pela necropolítica. Desta forma, quando nos deparamos com uma situação que exigiria empatia, como uma pandemia que atinge milhões de pessoas no mundo inteiro, entre vítimas, médicos, governos e famílias, a ideia dominante de uma sociedade que precisa estar sempre disposta a consumir e enriquecer financeiramente choca-se com a busca pela manutenção da vida.      

A questão, então, é como esta sociedade e aqueles que a governam se portam diante de uma situação de pandemia. Seria o caso de buscarmos soluções democráticas e sociais ou seria o caso de deixarmos morrer “cinco ou sete mil pessoas”, para que a roda da fortuna não pare de girar? E assim conseguimos perceber que este modelo de sociedade pode ser muito mais cruel com grande parte de nossa população não hegemônica. Para evidenciar esta situação, analisamos aqui as práticas na era pandêmica nas esferas econômica, da saúde e da educação.

Na esfera econômica, no Brasil neoliberal (ou necropolítico), observamos medidas orquestradas entre a sociedade e o seu Estado, gerido pelo governo, especialmente em relação ao amparo à população e a manutenção dos objetivos do capital. E o descaso fica evidente quando a sugestão de amparo econômico àqueles que não têm emprego ou trabalham de forma informal, e mães solo que nada podem sonhar para suas filhas e seus filhos, além da improvável sobrevivência, “gira em torno” de duzentos a mil e duzentos reais.

Esta sugestão de amparo econômico à população chamada de vulnerável, mas que na verdade é posta à própria sorte em uma luta diária contra a morte e a violência, representa muito menos, por exemplo, do que as ajudas que os bancos estão recebendo para atravessar a crise. E isto em um Estado que, no campo das ideias, abomina a intervenção pública.

Na esfera da saúde, desde que a PEC55, ou a “PEC do Teto de Gastos” foi votada, cada vez menos recursos são direcionados à área. Tal emenda constitucional inclui entre as prioridades do Estado o pagamento dos juros da dívida pública aos bancos e fundos de investimentos (que são sua maioria), e exclui investimentos que alcançam, diretamente, as populações vulneráveis. Em uma época de pandemia, devemos pensar que, enquanto alguns realmente alcançam uma saúde privilegiada, ou a tal mítica “saúde de atleta”, outros sequer têm o que comer e/ou acesso a saneamento básico e, por isso, precisariam do amparo da saúde pública. Mas, em uma sociedade capitalista, a mercantilização é de tudo, inclusive da saúde. Por isso, a gestão da saúde no Brasil hoje (pelo menos até o momento deste texto) é elaborada por um empresário da saúde, e não por um pesquisador, um gestor público ou alguém com o menor tato para olhar por aqueles que mais precisam.

Votação da PEC do Teto de Gastos na Câmara dos Deputados. Crédito da foto: Luis Macedo/Câmara dos Deputados.

Por fim, na esfera da educação, temos um sistema que, há anos, tornou-se mercantilizado e passou a ser sucateado estrategicamente, em um processo semelhante ao da saúde, inclusive sendo vítima da mesma PEC. Já há muitos anos, desde o governo Fernando Henrique Cardoso, a educação deixou de ser um direito, e passou a ser um serviço, e hoje passa a ser um produto digital, com a possibilidade da geração de mais valor crescer de forma exponencial, para o contentamento das empresas da área de educação. Além disso, com a pandemia, o grande desejo do atual governo de tornar tudo relacionado à escola em processos a distância, encontrou sua justificativa.

Mas, em uma sociedade que exclui ao incluir, não há de se ver problema em querer adotar para as classes mais vulneráveis e pobres os mesmos instrumentos que as mais caras escolas particulares. Imaginar que nas favelas e/ou nos bairros mais pobres do Brasil, em casas sem acesso à internet, sem acesso a saneamento básico e onde moram famílias amontoadas, as crianças terão a mesma condição de aprendizagem do que as classes médias e elites, é um tensionamento entre o não senso e a maldade.

Desta forma, com a análise destas esferas da vida social, que não são exaustivas, evidenciamos que as políticas do capitalismo neoliberal representam, para alguns segmentos da população, políticas de morte, sendo que a desigualdade não é, de forma alguma, geradora de ricos e pobres, de empresários ou sobreviventes, mas resultado de processos de exclusão/inclusão estruturantes de uma sociedade capitalista. Sabendo disso, a pandemia, que seria uma oportunidade para refletirmos o tipo de sociedade que somos, com todos os nossos predicados mais obscuros, tornou-se uma legitimação da necropolítica, em uma sociedade habituada ao necrocapitalismo, que não se choca diante de uma política perversa de deixar morrer os mais vulneráveis, os idosos, os miseráveis, aqueles enxergados como improdutivos e disfuncionais à valorização do capital. Afinal, e daí se alguns sequer possuem água na torneira para lavarem as mãos? E daí se 10 pessoas coabitam o mesmo cômodo em grande parte das residências brasileiras? E daí se não conseguem acompanhar as aulas online, se não dispõem de internet em pleno século XXI? Enfim, e daí se a empregada doméstica morreu após ser contaminada pela patroa que cumpria quarentena no Leblon?

E daí?

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