As vítimas comuns do bolsonarismo

A retórica inflamada da campanha bolsonarista atira como Roberto Jefferson. Talvez não tenha intenção de acertar, mas faz vítimas mesmo assim

Na eleição de 1989, o então candidato do PRN, Fernando Collor de Mello tinha um grito de guerra cativante. Ele ia acabar com os marajás. O problema do Brasil, dizia, eram esses sanguessugas que ocupavam o serviço público e dele tiravam milhões enquanto o restante do país estava à míngua. Era tentador. Imagine só: a solução para o país numa só varrida.

Naquela época, eu menina de nove anos acompanhava com curiosidade a eleição. Foi uma disputa intensa, uma fila interminável de candidatos, uns jingles chiclete que lembro até hoje (“Bote fé no velhinho…”). Mas foi a história dos marajás que mais marcou.

É que eu sabia bem de quem Collor estava falando. Sabia não porque vi os milhões, a riqueza usurpada. Mas porque naquela época não havia whatsapp e éramos nós crianças, filhos de funcionários públicos que ouvíamos essa acusação dos vizinhos, dos conhecidos. Na fila do pão e do leite, no portão de casa.

O marajá, no caso, era meu pai, professor de carreira, funcionário público que trabalhou no município, no estado, no então Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná (Cefet-PR) e na Universidade Federal do Paraná.

Meu pai, claro, não era nenhum marajá. Como tantos servidores públicos ele viveu a vida toda do salário. Tinha casa própria, comprada financiada, carro, os filhos na escola (privada por um tempo, pública depois). Tinha um ou outro luxo, como a oficina de marcenaria – que usava às vezes para ter uma renda extra – e uma moto. Viajou mais a trabalho que por lazer e, de vez em quando, conseguia levar a família para praia no verão.

Mas para Collor e o Brasil daquele ano de eleição os marajás eram os grandes inimigos. Um câncer a tornar o país doente.

Collor se elegeu. Não resolveu problema nenhum (na realidade criou alguns). E saiu do governo em desgraça, denunciado por corrupção e envolvido numa trama de novela das oito que teve até morte misteriosa.

Ninguém nunca, de lá para cá, se desculpou com os milhares de servidores públicos em todo o país usados de bode expiatório na campanha e na retórica de Collor. O discurso dele podia ser genérico, mas afeta até hoje a forma como as pessoas vêem o funcionalismo público, com desdém e ranço.

Tenho pensado muito nisso nessas eleições porque novamente vemos uma retórica de ataque que joga em grupos sociais a culpa pelos problemas do país. Há, claro, várias diferenças em relação a 1989. Hoje temos uma polarização, só dois candidatos viáveis. E o discurso é terra arrasada: quem não está com o atual presidente é comunista, é vagabundo, ladrão.

É uma acusação que põe milhões numa panela só. Mas que principalmente é feita de vizinho contra vizinho. De pai para filho. De colega de trabalho contra outro. É uma retórica que não vai acabar no dia 30, independente do resultado da eleição. Mas que vai deixar feridas. Como Roberto Jefferson, talvez a intenção não seja acertar ninguém, mas não deixar de deixar vítimas.

Resta saber, no fim, todas as vítimas comuns do discurso radical vão ter direito a ouvir um pedido de desculpas.

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