As telas e a tragédia anunciada da “Educação 4.0”

Se as crianças usam muitas telas e isso é ruim, por que afinal é bom que essas mesmas telas sejam parte da rotina escolar?

O excesso de exposição a telas é um problema bem documentado na literatura científica da área médica e da área educacional desde a década de 1960, quando a televisão ainda estava no início de sua história nos EUA e no Brasil. Desde então tivemos a introdução de novas telas à rotina familiar e infantil: o computador, o tablet, o celular, além de telas em carros, no elevador, no ônibus e praticamente em todo lugar. E a preocupação com esse excesso só aumenta.

O Center for Disease Control and Prevention (CDC) – a Anvisa americana – aponta que o excesso de tempo de tela aumenta o risco de obesidade, problemas de sono, ansiedade, prejudica o desenvolvimento cognitivo e reduz o tempo de atividades físicas diárias. E recomenda zero tempo de tela para bebês de até dois anos, uma hora por dia para crianças até cinco anos e no máximo duas horas por dia para crianças de 6 a 17 anos.

O CDC não está sozinho nisso. Órgãos semelhantes em outros países fazem recomendações semelhantes de restrição de tempo de tela para crianças e adolescentes e até mesmo adultos. Enquanto isso, pesquisadores de diversas áreas – médica, educacional, psicológica, nutricional – encontram cada vez mais indícios de que a tela em excesso pode resultar em problemas futuros, inclusive o aumento de incidência de Alzheimer.

O problema é que junto com o aumento da preocupação com o excesso há também outros fatores que dificultam a redução desse tempo de tela. Primeiro temos pais e mães cada vez mais sobrecarregados que recorrem às telas como uma ajuda na rotina familiar. Segundo que há mais oferta de telas para as crianças, com videogames, tablets, celulares e televisões sempre à disposição inclusive nos carros.

Mas há também um terceiro fator mais grave e absurdo: o aumento da oferta de telas no ambiente escolar. Justamente quem deveria liderar a preocupação e o cuidado com essa exposição excessiva está aderindo cada vez mais a recursos tecnológicos cujas vantagens para o ensino não estão claras.

Nas escolas as telas se apresentam em diversos formatos. Elas estão nas paredes substituindo o quadro negro ou branco, no horário de aula substituindo o conteúdo com a exibição de filmes ou vídeos de curta duração, nos tablets e celulares usados como material didático em muitas unidades escolares e nos computadores e aulas de programação e robótica.

O discurso prevalente é de que não dá para “lutar” contra a digitalização porque os alunos já chegam nas salas de aula integrados a um “mundo digital”. Grosso modo é a mesma coisa que servir só nuggets e refrigerante na cantina da escola porque as crianças já se alimentam mal em casa mesmo. Oras, não é papel da escola usar os erros das famílias como justificativa para abraçá-los no contexto escolar.

Se as crianças usam muitas telas e isso é ruim, por que afinal é bom que essas mesmas telas sejam parte da rotina escolar?

Em resposta a uma crescente pressão pela “modernização” do ensino, as escolas públicas e privadas correram a aderir a modas pontuais da tecnologia nem sempre com a anuência ou concordância dos professores ou mesmo dos pesquisadores da área. Um exemplo é o uso do tablet, um equipamento praticamente extinto no mercado de consumo comum depois que os celulares começaram a ter telas maiores e mais funcionalidades. Os tablets continuam nas escolas agora numa segunda encarnação como “livro didático interativo”.

Também são usados numa crescente digitalização da rotina escolas, com a criação e imposição de aplicativos para rotinas básicas, como o registro de presença, o cadastro do planejamento didático até mesmo a aplicação e correção de provas. Parece uma ótima ideia, mas isso significa mais tempo de tela para professores, gestores e para os alunos. Isso sem considerar os inevitáveis problemas causados por falhas na estrutura, como falhas de conexão.

Nas escolas públicas estaduais do Paraná, por exemplo, os alunos e professores são obrigados, por determinação da Secretaria de Estado da Educação, a fazer redações no aplicativo Prova Paraná, que faz a correção gramatical do texto, enquanto a correção final é feita pelo professor. Parece uma excelente ideia, exceto pelo fato de que tira do aluno a oportunidade de produzir a redação no papel, praticando letra cursiva e tendo que fazer o planejamento mental que essa atividade implica.

Mas isso não se restringe a escolas públicas. Há escolas privadas em Curitiba que já substituíram parcialmente ou totalmente o livro didático pelo tablet e/ou plataformas digitais. Ou que incluem tempo de “jogo” como parte da rotina escolar. Há escolas infantis que mantém telas ligadas nas salas e espaços de brincar o dia inteiro.

E com qual ganho para a comunidade escolar e a qualidade do ensino? Não sabemos porque o resultado de uma mudança de cultura e rotina dentro das escolas só vai se apresentar no médio e longo prazo. Ou seja, estamos apostando sem saber o retorno. E apostando com a saúde mental e o desenvolvimento cognitivo de nossas crianças e adolescentes.

Então imagine a quantidade de estímulo ao qual uma criança hoje é exposta da hora que acorda até a hora de dormir. Quanto do tempo de tela recomendado pelo CDC é consumido dentro da escola, um lugar no qual nossas crianças ficam de 4 a nove horas por dia?

Cada vez mais gestores, com destaque para Secretários de Educação, vendem a ideia de digitalizar ainda mais a escola como um grande avanço, como a escola 4.0, uma versão já pronta “para os desafios do futuro”. Mas na realidade o que existe de mais concreto a respeito do efeito desse excesso não tem a ver com benefícios, mas com riscos.

Além disso estamos descartando elementos importantes do processo de escolarização sem saber muito bem o que entra no lugar. É o caso da escrita cursiva, primeira vítima do uso crescente de computadores e celulares para escrever. Os livros didáticos e de literatura, substituídos por suas versões eletrônicas sem que a gente saiba, afinal, pra que.

É muito mais provável que ao invés de uma geração “preparada para o futuro”, tenhamos jovens adultos ansiosos e com problemas de insônia. Quem vai protegê-los desse destino?

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