Andraus x Paraná Clube (e sobre como eu vim parar aqui)

setenta anos depois de meu avô escolher seu time, sofro com Liliu na Série B do paranaense. Uma tradição de tristezas que ainda vai voltar a dar alegria para os paranistas

A história deste jogou começou para mim há mais de 70 anos. Por óbvio, nem nascido era. Meus pais estavam na sua primeira infância e não faziam a menor ideia da existência um do outro – o que é uma coisa bastante estranha de se imaginar antes de ver um jogo de futebol raiz.

A cada início de campeonato que o Paraná Clube participa penso em contar como fui formado na categoria de torcedor. Queria um texto caprichado. Nunca fiz. Depois um post caprichado. Niente. Então uma rápida foto. Poderia ser um medíocre stories no Instagram, com a camisa tricolor e uma frase motivacional besta, dessas que a gente escreve em stories medíocres. Inevitavelmente, assim como o time, falhei. Agora que o risco de nunca mais ter um campeonato para começar é real (e diria que considerável), me ajeitei à frente do computador, caprichei no café, depois na cerveja, e me permiti a egotrip futebolística.

Voltemos setenta anos. Na Curitiba dos anos 50 meu avô materno – que mais tarde foi o responsável por debutar seu neto na Vila Capanema – administrava junto com seus muitos irmãos o Hotel Marcassa, onde hoje é a esquina da João Negrão com a Sete de Setembro, a poucos metros da Ponte Preta. Lembro que quando criança o velho Aziz era conhecido na vizinhança como “Seu Marcassa”.

Hotel em Curitiba, naquela época, não guardava qualquer semelhança em refinamento e glamour com aquilo que o imaginário coletivo imediatamente busca e que se traduz em um Copacabana Palace ou em um empreendimento mais moderno. Asfalto na porta era um luxo. Outro diferencial era a Dona Jura, minha avó, que cozinhava os pratos que faziam a fama do lugar, como língua de boi com purê e ervilha, sopa de bucho e “bolinho de resto”. Em dezembro era servido o prato favorito do meu avô para comemorar seu aniversário: caranguejo. Tudo era muito simples, familiar, limpinho e bem frequentado.

O pequeno número de hotéis na cidade naquela época e a proximidade com a Vila Capanema fizeram do Hotel Marcassa o local onde o Clube Atlético Ferroviário se concentrava a cada rodada do campeonato paranaense, a maior competição possível dos anos 50 e 60. Filho de um árabe com uma italiana e com algum tino comercial, para fidelizar o grande cliente que sempre beliscava um título aqui, outro ali e tinha um estádio novinho construído para a Copa de 1950, não demorou para o velho Aziz se declarar Boca Negra desde sempre.

Na Vila, as cores do Paraná aparecem de novo depois de oito meses sem jogos com torcida. Foto: Bob Marochi

Para os jovens do Fifa 23, Boca Negra era o nome do simpático indiozinho mascote do time e também como os torcedores do Ferroviário eram conhecidos. Antagonistas dos alemães coxas-brancas e dos aristocratas do outro Atlético do fim da Engenheiros Rebouças. Boca Nega era o povo.

Nos anos 60, primórdios dos campeonatos nacionais de futebol, meu avô se valeu do mesmo artifício comercial com Vasco e Palmeiras, times para os quais ele jurou amor até o fim dos seus dias. Não acho que fosse da boca (negra) pra fora. Mas acredito que o coração sírio-carcamano sempre bateu mais forte pelo time daqui.

O neto

Os anos passaram. O Velho Aziz e seus irmãos venderam o hotel e se aposentaram. Meu avô construiu sua nova casa a três quadras do portão principal da Vila Capanema. O Ferroviário em 1971 se fundiu com o Britânia e o Palestra Italia. Nascia o Colorado Esporte Clube. Em 1975 nasce o primeiro neto homem do Seu Marcassa. Adivinha quem? Quando completei 3 anos, ganhei dele uma camisa do Colorado como o número 3 (também o dia do meu aniversário) bordado nas costas. Essa camiseta é uma das minhas lembranças mais antigas da infância. Outra é de minha tia Idalina, que fazia bolos maravilhosos e que, junto com a camiseta, confeitou um bolo de morango em formato de camisa de futebol, todo vermelho, com o escudo feito de coco ralado e granulado para o meu aniversário.

Veja como são as coisas e o poder da sugestão. O afeto do meu avô, da minha tia e a escolha do número 3, me definiram em vários sentidos. Se a piazada sonhava em ser Zico, Sócrates, Careca ou Reinaldo, meu primeiro herói da bola não foi um atacante, mas o Caxias, o mediano zagueiro central boca negra. Era sempre para quem vestia o número 3 que eu dedicava minha atenção. Na Copa de 82, ainda com seis anos, queria ser o Oscar. Seu gol de cabeça, numa cobrança de escanteio, foi o que mais comemorei daquele time fantástico. Resultado: na educação física da escola ou na pelada entre amigos do bairro, imediatamente me posicionava na defesa. Não que eu fosse um talento desperdiçado dando botinadas. Nasci com dois pés direitos pra jogar bola. Fiz meus golzinhos, é certo (o mais bonito deles virou um conto de algum sucesso entre amigos do tempo de escola), mas ser o último a ser escolhido para formar os times era normal. Ficava feliz quando era o penúltimo. Radiante quando antepenúltimo. O papel de escudeiro, de Sancho Pança, sempre me foi confortável. Não é maluco?

Setenta anos depois das concentrações no Hotel Marcassa, na Vila Capanema para manter a tradição. Foto: Bob Marochi

E assim eu crescia, com total discrição futebolística, que mais tarde se tornou vergonha na medida que o Colorado se tornava o clube folclórico que tomava gol de goleiro, que dividia os títulos que ganhava, que evitava um gol certo com o massagista entrando em campo e isolando a bola.

Nem tudo era vergonha. A torcida organizada do Colorado tinha o nome mais legal que já vi: “Solidalheboca”, uma corruptela do expoente sindicato polonês “Solidariedade”, comandado nos anos 80 por Lech Walesa. As logomarcas eram iguais, com letras vermelhas em bandeiras brancas ou o contrário. Era bonito de ver na arquibancada.

Outro orgulho? Ganhamos do Flamengo do Zico campeão do mundo no Couto Pereira. Era o time reserva do Flamengo, mas quem liga pra esse detalhe?

O Pai

Novo avanço nos anos. Da expectativa com um time que venceu do Flamengo no início da década viria a frustração com uma sequência de campeonatos bem pouco competitivos. E de novo a euforia retorna quando é feita a fusão do Colorado (time com alguma torcida, não a maior, mas certamente a mais legal) e do Pinheiros (time de muuuito patrimônio). Parecia o casamento perfeito, e era. E foi. Por um tempo.

Nessa nova fase meu companheiro de estádio muda. Sai o Velho Marcassa e entra em campo o Seu Marochi, meu pai. Ele, que não contava mas eu descobri, foi coxa branca até a adolescência mas virou casaca para agradar o sogro dono de hotel-concentração. Com ele fui ao primeiro jogo da história do Paraná. Coritiba 1 x 0 Paraná, no Couto. Henágio e Pedrinho Maradona foram os nomes de destaque naquela tarde daquele time com um modelo de camisa inédito no pais, metade vermelha, metade azul. Uma semana depois pegamos chuva juntos na Vila pra assistir o gol inaugural do tricolor, feito pelo ponta direita Sergio Luiz, o Pinduca, contra o Cascavel.

Juntos vimos Adoilson, Saulo, João Antônio, Balu, Ednelson, Ricardinho, Caio Junior… Íamos a quase todos os jogos. Às vezes eu ia sozinho. O contrário, nunca.

Eramos muito felizes com a rotina de halterofilistas de troféu. Passei a faculdade comemorando títulos TODOS os anos. Eu era um bom vencedor, também porque preocupado com outras coisas da vida adulta e tamanha a disparidade com os rivais locais de então.

Mas percebam: se a dor produziu muitos e longos parágrafos acima, a alegria me deu poucos e curtos. Como cantou o poeta, é preciso um bocado de tristeza, senão não se faz um samba, não.

Terceiro avanço no tempo. a vaca emagreceu, rumou para o brejo. As pragas do Egito atravessaram o oceano e fizeram morada no bairro do Rebouças em Curitiba. Três delas moram ainda hoje atrás do gol da Engenheiros Rebouças. Outras três na Curva Norte. Duas estão nos camarotes próximo do relógio e as duas últimas nas cabines de rádio. Todas elas se encontram na piscina vazia debaixo do viaduto nas quartas-feiras à tarde para trocarem ideia de como sugar ainda mais o hospedeiro.

O Jogo

Chegamos a esse final de semana de 2023 com sete mil pessoas na Vila Capanema para um jogo de segunda divisão estadual. Depois de 8 meses longe do estádio, eu e toda essa turma acreditamos piamente que um novo ciclo irá se iniciar. É a mola no fundo do poço do elevador, que nos impulsionará novamente para o alto e para dias melhores.

Embora o jogo seja no estádio tricolor, o mando de campo é do Andraus, que espertamente cedeu seus espaços ao Paraná para garantir melhor bilheteria. Quando o mando for do time da Gralha ninguém entrará porque meu time foi punido com vários jogos de portões fechados, fruto do quebra-quebra com a queda da divisão estadual.

Torcida fiel: sete mil pagantes para ver a segundona do estadual. Foto: Bob Marochi

O craque do Paraná hoje é Liliu, um centroavante de alguma habilidade que voltou para o Brasil em seu quarto final da carreira depois de rodar por vários times da Europa Oriental. Com menos de trinta minutos de jogo Liliu marcou dois gols e fez outras duas ou três boas jogadas. Vai ter Liliu no Fantástico, eu penso, pedindo uma canção gospel. Mas aqui é Paraná Clube, filho legitimo do Colorado, aquele que tomava gol de goleiro em tiro de meta. Faltando menos de dez minutos para acabar a primeira etapa, duas bolas perdidas no meio-campo, dois gols do time com nome de andaime.

O segundo tempo foi de um sono absoluto, recheado com muita catimba, cãibras duvidosas, um juiz bem estranho e uma indigência técnica de fazer chorar.

Final: 2 x 2. Semana que vem tem mais, agora contra o PSTC, no interior.

Saio do estádio cantando o Samba da Bênção citado ali em cima. Em especial os versos “porque o samba é a tristeza que balança / E a tristeza tem sempre uma esperança / A tristeza tem sempre uma esperança / De um dia não ser mais triste não.”

Penso que mesmo flertando com o abismo, eu entendo quem torce para a Lusa ou para o Juventude da Mooca quando poderia escolher entre Corinthians, São Paulo, Palmeiras ou Santos. Ou para o América carioca, time do hino mais bonito do país, quando poderia escolher entre Fla, Flu, o Vasco do seu Aziz ou mesmo Botafogo. Quem escolhe ou aceita o Santa Cruz no Recife. O Queens Park Rangers ou o Leyton Orient em Londres. O Rayo Vallecano em Madri. A chance desses times disputarem títulos é baixíssima, quase nula. Mas não se trata disso.

Trata-se de uma alegoria de vida, de não esmorecer, sentimento sem volta de anos e anos de esperança e outros afetos dedicados a uma causa. Uma projeção de expectativas, diria qualquer psicólogo. Nunca sozinho, mas em família, entre amigos. Um ponto sem retorno, onde, se aquela instituição significa algo para você, pior é negar, fingir que aquilo não é importante. Assumir sua torcida dá até um ar meio cult para a dor, admito. O que não dá é adotar novas cores. Seria como arrancar um membro, uma parte do seu DNA.

Faz uns dias, na caminhada matinal indicada pelo cardiologista, ouvi um podcast com o jornalista esportivo Flavio Gomes, o Meianov. Ele contava como conseguiu fazer seus filhos torcerem para a Portuguesa. Foi de uma beleza que, marmanjo feito, me fez chorar no meio da rua.

Seu Aziz, Seu Mané, Seu Marcassa: obrigado pela escolha que você fez por mim. Me formou como pessoa. Me deu predicados, bons e ruins. Um grande beijo boca negra (ou tricolor, você escolhe) onde você estiver. Aí está, finalmente, meu texto caprichado e com dedicatória para você.

Seu Marochi, Meu Velho, meu Pai, obrigado por dar continuidade nessa escolha.

Ao Paraná Clube: te amo desgraça. Vaaaiii time fdp!

Sobre o/a autor/a

20 comentários em “Andraus x Paraná Clube (e sobre como eu vim parar aqui)”

  1. Eduardo Kaehler Meister

    O seu texto é maravilhoso, perfeito Apenas temos o Juventus da Mooca, e não o Juventude. Mas esse erro de grafia dá ainda mais um charme ao texto.

    Ser paranista é ser diferente, e a nossa desgraça nos fez atingir um estágio de intangibilidade… o que nos torna imunes a gozações, a provocações. Nosso amor pelo tricolor – boca-negra – é tão legítimo, que obriga os adversários a respeitar a nossa condição.

    Um grande abraço, e para sempre, Paraná Clube.

  2. Gertrudes Thomaz

    Belíssimo texto….
    Vivi muitos desses momentos….
    Alegrias infinitas…..mas depois muita tristeza ….. muito choro.. .
    Mas, nunca desistência!
    Sou boca negra, colorada e Paranista com um orgulho que não cabe no peito….
    Pra sempre te amarei meu Tricolor da Vila! ❤️💙🤍

  3. Arlete S de Lima

    Me emocionei com seu texto! Meu falecido pai era sócio do Ferroviário e guardo a carteirinha dele até hoje! Assisti muitos jogos na Vila do povo!

  4. HERCULES DOS SANTOS NEVES

    Parabéns, esse texto me fez lembrar momentos que estavam apagando da minha mente, emocionante sou boca negra desde que nasci.

  5. Sou da mesma geração de torcedor do Paraná e compartilho a mesma história com a única diferença que o meu avô (que conhecia o teu) trabalhava na rede.
    Muitas alegrias e decepções embaixo do relógio com os camaradas da Vila Ferroviária nós tempos que em Curitiba ainda tinha neblina.
    Também joguei no Colorado e treinava no Britânia, uma das maiores emoções da minha vida foi jogar na Vila Capanema nas preliminares.
    Eu evito passar no viaduto do Colorado para não ter que ver a piscina aonde aprendi a nadar e dei o meu primeiro beijo naquele estado (que aliás era pinheirense).
    Lembro da vitória contra o Flamengo (entrei com a carteirinha da federação do meu amigo) e também lembro do primeiro fatídico jogo contra o coxa.
    Os parasitas comeram tudo que os clubes tinham mas a nossa paixão eles NUNCA vão abalar.
    Muitos obrigado por escrever esse lindíssimo texto e trazer de volta a emoção de ser Paranista.

  6. Muito bacana! Aliás, eu me sinto, meio Forrest Gump, na história Tricolor/Boca-negra, pois, quando jogava no antigo dente-de-leite (atual sub 15) do Colorado, quando treinávamos e jogávamos no Britãnia (atual Big da Avenida das Torres), levei para treinar/fazer teste, aquele que faria o último gol da epopeia colorada, no empate de 3 a 3 com o Coxa, 9 anos mais Tarde!

  7. Bela crônica, acho que Armando Nogueira também aprovaria.
    Amigo que esteve recentemente em Madrid fez questão de comprar um uniforme do Rayo Vallecano, por considera-lo um time raiz, “maldito”, fora dos padrões do asséptico futebol de ponta atual.
    Quando me contou isso, fizemos um paralelo com os times daqui e comentamos: tivessem mantido o Ferroviário, o autêntico Boca Negra, talvez hoje fossem uma força da periferia, de Curitiba e região metropolitana.
    Provavelmente o clube seria pobrinho do mesmo jeito que está, mas com o apelo de ser raíz.
    Well, vai saber, né?

  8. Mauricio Marlangeon

    Excelente texto!!! Perfeita sincronia entre paixão, história e razão. Muito obrigado por compartilhar sua história. Sou Coxa, mas assim como muitos amigos e familiares que torcem pelo Athletico, torço genuinamente para que muito em breve o Paraná volte ao seu lugar de origem, 1a Divisão, não só no futebol local, mas também nacional.

  9. Como faz falta as crônicas do futebol!!!
    Ainda mais quando são assim, carregadas de paixão, tradição e identificação. Importantes, são, crônicas como esta que nos fazem lembrar que não se vive só de números e/ou resultados, que os clubes tem suas cores por algumas razões e que cinza é a cor do desvanecimento do vital que pulsa o futebol, assim como desvanecem de sentido aqueles que encabeçam a capital paranaense.
    Parabéns, Bob e Avante Tricolor !!

  10. Mario Pederneiras

    Beleza de texto. Adorei . Dou Athetico do final da rua, do tempo que a baixada era localizada em frente ao campo do 5 de maio e no final da rua do CAF. Boca Negra dos ferroviários . Torço para vê-los jogando conosco com o mesmo entusiasmo de então.

  11. Fabiano Weinhardt Jazar

    É primo, sofrendo do início ao fim, esperando que o fim esteja longe (não quero ser realista nunca!). Vô Aziz nos fez acreditar que o impossível pode ser possível, mesmo que por um curto período de tempo…
    Como adorei o texto!

  12. Belíssimo texto. Cheio de lindas memórias e referências também da minha infância e juventude. Mesmo não sendo colorado, foi de emocionar! Show de bola, mesmo!

  13. Geraldo Luiz Farias

    Raça time.
    Parabéns por “nos retratar” nesse texto … as similaridades são muitas a de todos Paranistas de hoje …

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