A conscientização sobre o autismo começa dentro de casa

Receber o diagnóstico de autismo é o mais fácil, os desafios vêm depois

Abril é o mês de conscientização sobre o transtorno do espectro autista. Há 12 anos descobri que meu filho também faz parte dos mais de dois milhões de brasileiros com esse diagnóstico. Desde então, participo de vários grupos on-line de famílias; semanas atrás circulou por lá um vídeo de um pai. O sujeito, um homem de negócios aparentemente muito bem-sucedido, falava o quanto sua vida mudou depois do diagnóstico de autismo do filho. Era um vídeo como tantos outros que vemos por aí: “Meu filho me ensinou isso, meu filho me ensinou aquilo, hoje sou uma pessoa melhor”.

Realmente acredito que ter um diagnóstico delicado como o autismo dentro da família pode levar a tremendas mudanças pessoais e por isso vou falar um pouco da minha própria experiência aqui. A propósito, me lembrei do documentário Human, de Yann Arthus-Bertrand, e de um dos depoimentos mais marcantes. Um pai que chorava muito ao falar da experiência de ter um filho com alguma deficiência (talvez autismo, mas isso não é confirmado no filme). A fala também é comum entre os pais que passam por essa situação, algo na linha: eu tinha tais expectativas, agora tenho de lidar com uma realidade para a qual não estava preparado.

Cheguei a lançar um documentário com relatos de pais em que esse sentimento é visível (Um só mundo, disponível no YouTube). Quando o Plural me convidou para escrever novamente sobre autismo, escolhi falar sobre isso, mas de outra perspectiva. Estamos acostumados a lutar pela conscientização fora de casa, culpar o governo, a escola, os profissionais, a sociedade preconceituosa. Tudo isso precisa mesmo de atenção, mas tão destrutivo quanto essas ameaças externas é ser ignorado, desrespeitado ou excluído dentro da própria casa. Muitos pais falam sobre o autismo de seus filhos, mas concordam com ele apenas da boca pra fora; lá dentro ainda sangram e gostariam que tudo fosse diferente.

Temos, é claro, os gravíssimos casos de negligência que ocorrem por ignorância, falta de recursos e de apoio do poder público. Situações em que pessoas com autismo permanecerem trancadas, acorrentadas ou em espaços semelhantes a canis. Vez ou outra essas histórias são noticiadas pelos jornais, denúncias que merecem ser trazidas à tona e receber a atenção de órgãos competentes. Os casos que vêm a público se concentram mais em famílias vulneráveis econômica e culturalmente. Mas a conscientização real falha em todos os cenários. Mesmo em casas de altíssimo padrão, em famílias com poder aquisitivo para bancar horas e horas de terapias específicas para seus filhos, mas que quando olham nos olhos deles, não os veem verdadeiramente.

Nessa caminhada como mãe e como ativista, presidente de ong e coordenadora de projetos de inclusão para esse público, estou na terceira pós-graduação sobre autismo, já fiz palestras para mais de cinco mil pessoas, já me apresentei em dezenas de escolas. E mesmo com tanto esforço para entender e levar informações sobre o autismo ao maior número de pessoas possível chegou um momento em que vi que estava na direção errada.

Eu tinha certeza de que há anos estava em paz com o diagnóstico, que aquele baque inicial era um capítulo encerrado. Só que eu estava muito enganada. Nas pequenas coisas que aconteciam em casa, uma irritação minha, uma bronca, um desabafo, o que eu percebia como cansaço, como papel de mãe que educa, vejo que meu filho pode ter sentido como falta de aceitação. Infelizmente em parte ele estava certo.

Olhando cuidadosamente notei que meus momentos de estresse, atuais ou ao longo da vida dele, tinham algo em comum. Todas as vezes estavam relacionadas a um comportamento ligado ao autismo e que internamente, inconscientemente, eu não queria ver, eu não queria que existisse. E foi depois de anos de terapia e constelações familiares que eu finalmente me dei conta: sim, eu aceitava o autismo na minha cabeça, mas algumas das minhas atitudes mostravam que ainda não era o bastante.

Em algum nível eu gostaria que ele agisse de outra maneira, de uma forma em que o autismo não estivesse tão gritante. Eu não queria que ele ficasse tão vulnerável aos olhos dos outros; ao tentar mudar o comportamento dele, pensava que o estava protegendo, preparando para não sofrer. Sem querer, eu ia na onda da sociedade preconceituosa e talvez tenha passado a ele a mensagem errada, a de que ele era o falho, e não quem discrimina. Uma das melhores formas de poupar alguém de sofrimento é não tentar fazer com que ele seja quem não é. Simples, mas não é fácil.

Adriana e o filho, hoje com quase 16 anos.

A partir dessa conscientização interna, da retirada dos véus, vi que meu filho não é alguém que precisa de x horas de terapias semanais para disfarçar suas dificuldades e tentar passar por um menino neurotípico, “normal”. Mas um indivíduo como tantos outros, parte de um grupo de pessoas que têm potencialidades, talentos, dons específicos, mas que também podem passar a vida toda pensando que não são adequadas ou aceitas como são, pensando que são errados, um peso, uma decepção para pais que esperavam pelo filho “perfeito”. Pais não dizem isso abertamente, mas será que não passam essa ideia pelo modo como agem nos momentos difíceis?

Foi um processo doloroso escancarar para mim mesma que, embora eu sempre tenha pensado o contrário, por muito tempo eu não aceitava o autismo do meu filho patavina nenhuma. Ao mesmo tempo em que queria que ele encobrisse seus comportamentos relacionados ao transtorno, eu me culpava justamente por não conseguir “educá-lo” o suficiente para que ele deixasse de agir assim.

Hoje reconheço minhas falhas e vulnerabilidade e busco cada vez mais me afastar daquele “modelo terapêutico de disfarce do autismo”. Quero que possamos caminhar alinhados com a concordância, na positividade, no desenvolvimento de habilidades, e principalmente, da autoestima. E que esse potencial possa ser aproveitado e considerado como suas características naturais, assim como são aquelas relacionadas a dificuldades comuns no autismo.

Aquele homem de negócios do vídeo que vi e comentei no início desse texto dizia que a única coisa que ele sonhava era com o momento em que seu filho finalmente falasse. Esse pai já caminhou muito, mas em algum momento, espero, vai se dar conta que, enquanto espera que seu filho fale, ele está esperando um filho diferente. O filho real, aquele que está diante dele sem verbalizar palavra alguma oralmente, pode estar falando muito de outras formas, sem ser visto. O quanto negamos e ignoramos a  realidade quando nosso foco está no que talvez nunca seja possível acontecer?

Com praticamente 16 anos meu filho interrompe as pessoas por não perceber a importância da alternância em um diálogo, não presta atenção se o assunto não é do seu interesse, corre dando alguns gritos pela casa tarde da noite, quando saímos chama a atenção com seus 1m83 pulando de um lado para o outro falando ou rindo sozinho. Com o ensino remoto, requer minha presença constante para trabalhos e avaliações, não tem ainda autonomia.

Às vezes não é fácil, cada dia um pouco e um pouco cada dia. Mas como é libertador e maravilhoso finalmente ter deixado de brigar com o autismo, concordar com o destino do meu filho e perceber que posso ajudá-lo no que ele precisar. No que ele precisar, não no que eu precisar, não no que a sociedade espera que ele precise. Incluir um filho é olhar com amor todas as peças, todas as partes que fazem dele alguém um ser em constante evolução como nós, também partes igualmente importantes de algo maior. Nesse dia de conscientização pelo autismo de 2021, a covid-19 nos fez ficar dentro de casa, sem caminhadas, sem cartazes pelas ruas. Que seja a oportunidade para a conscientização mais importante – aquela pautada pelo amor, dentro do nosso lar.

Sobre o/a autor/a

10 comentários em “A conscientização sobre o autismo começa dentro de casa”

  1. Roberta Guimarães Busemeyer Lise

    Em uma das minhas madrugadas de mãe atípica. Daquelas cheias de neuras na cabeça. Esse texto maravilhoso chega até mim. Gratidão

  2. Sou uma pessoa autista, e agradeço pelo depoimento, pois ainda existe muito desconhecimento sobre o autismo. Por exemplo: não existe apenas um tipo de autismo e sim um espectro, ele se manifesta de formas diferentes em pessoas diferentes. E não há evidência científica que indique que qualquer substância cause autismo. Para mais informações, indico o site do Introvertendo (https://www.introvertendo.com.br/), que é um podcast, mas no site também tem as transcrições de seus episódios e outros textos especíicos falando sobre a condição.

  3. Adriana, há anos nos conhecemos e acompanho sua jornada. Sua sensibilidade e capacidade de abraçar suas vulnerabilidades é admirável, sua coragem de abrir para nós num texto íntegro e delicado a sua caminhada, os seus dilemas, fragilidades e superações me tocou profundamente. Te admiro demais!!

  4. Perfeito texto. De fato, já percebi tbm que dentro de casa e dentro de nós também é preciso um processo de conscientização e esclarecimento. Obrigada pelo texto! ????

  5. Muito boa a matéria. Penso que ele tem um autismo diferente. Por já vi autista severamente agressivos. Os cientistas da neurociência cada dia estão descobrindo vários transtornos. Muita química nociva. Principalmente para as mulheres que são cobaias para tudo. Cosméticos pílulas novas. Remédios para cânceres. Com a pandemia só Deus sabe as consequências.

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