Tabuleiro: alimento para o corpo e para a alma

Projeto monta cozinha em terreno de axé na periferia de Curitiba e ajuda mulheres durante pandemia

“O Tabuleiro começou a ser escrito quando eu estava me reconectando com a minha essência após um período turbulento e da sororidade e acolhimento da mana Janaina Moscal que me ajudou no processo”, conta Amanda Gonçalves, ao mostrar a nova cozinha de produção no bairro do Pinheirinho, periferia de Curitiba. Quem passa do lado de fora não imagina que por detrás daqueles muros e do portão bem fechado impera o cuidado pela vida do outro.

A cozinha do Tabuleiro funciona no terreno de uma casa de Axé, que traz a força e a proteção dos Orixás – o lugar faz o elo entre o nutrir e o deixar-se nutrir, um ciclo muito importante na culinária africana e afrodescendente uma ligação que também é importante e sagrada das casas de Candomblé. “Não se trata só de curar outras mulheres, mas também de levar o conhecimento para elas e me curar através disso”, diz Amanda, enquanto deixa no ar um gesto sutil de agradecimento.

Mulheres empreendedoras

Amanda escreveu o projeto do Tabuleiro dois anos antes de colocá-lo em prática. No início da pandemia, ela trabalhou para ajudar nas ações que davam assistência às pessoas mais vulneráveis. Iniciou o aprendizado nas ações da ONG Usina de ideias, do MST e do Coletivo Muié – e foi aprendendo a fazer. Com a pandemia estendendo o prazo de isolamento, Amanda sentiu o peso da falta de renda na própria vida. A partir daí, o Tabuleiro voltou com força. “Eu via a necessidade não só de entregar cestas e marmitas. As doações iam diminuir cedo ou tarde e as mulheres, mães solo como eu, não podiam depender de assistência. Para trazer à tona a dignidade delas primeiro.”

Sem insumos, sem equipamentos de proteção para dar início, Amanda começou uma campanha de arrecadação;  a entrega era feita na Usina de Ideias, no Parolin. Logo o apoio começou a surgir. A mãe do terreiro que Amanda frequenta, Guiomar Medina Gaona, ofereceu o espaço para construir a cozinha. “Falamos muito com várias parcerias, aprendi sobre economia solidária e foram dias lavando bancada, esfregando coisas e planejando e pensando com quais mulheres poderíamos contar.”

No segundo semestre da pandemia, os números de mortes e contaminações já eram alarmantes. As doações caíram diante das dificuldades que se espalharam com o vírus. Segundo o IBGE, quase 8,5 milhões de mulheres saíram do mercado de trabalho no terceiro trimestre. Dentre elas, estão as mães-solo responsáveis pelo sustento da família.

O Ministério do Desenvolvimento Social, mostram que no ano passado, 6 milhões de mães-solo estavam incluídas no Bolsa-Família. Dessas, pelo menos 4,8 milhões podem não receber o auxílio esse ano. Já a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE revela que 54,9% dessas mulheres vivem com renda per capita inferior a US$ 5,50. De maneira ainda mais estarrecedora, nos domicílios administrados por mulheres negras o percentual sobe para 62,4%.

A força da ancestralidade

O esforço que Amanda faz para entender o lugar onde vive parte do lugar que ela ocupa na sociedade. Como mulher negra, muitas vezes ela se deparou com o abandono e com dificuldades para acessar coisas fundamentais. “Eu acho muito injusta essa realidade, essa falta de apoio.” O nome “Tabuleiro” surgiu desse lugar em que ela e outras mulheres estão, da narrativa de vida das muitas mulheres que se opuseram a um sistema opressor.

“O Tabuleiro tem todas as diretrizes do candomblé, uma religião matriarcal que ajuda a nos percebermos como mulheres, antes de sermos feministas. As mulheres periféricas não são contempladas pela luta e realidade das mulheres feministas.” diz Amanda.

Todas as dificuldades que Amanda passou hoje são questões que ela trabalha para que não aconteça com mais mulheres. “Trabalhar esse empoderamento, ter essa sororidade. Passar a elas que elas podem, que elas conseguem e que elas não estão sozinhas.. é muito importante pra mim” diz.

 O Tabuleiro tem suas dores

Tudo o que é pensado no Tabuleiro, o transporte, a alimentação que as meninas recebem para conseguir ficar no curso, é parte desse olhar delicado para a história de vida de cada uma. Porém com o lockdown e o número crescente de mortes por Covid-19, o Tabuleiro está parado. Amanda mantém o Tabuleiro como pode, com os trabalhos autônomos que tem feito.

Hoje, em busca de auxílio para manter o projeto, ela tem alimentado as redes do instagram (@tabuleirodara) para que as pessoas conheçam a iniciativa e possam contribuir com alguma forma de parceria. “Cada uma dessas mulheres precisa pagar água, luz, aluguel. Umas precisam comprar fraldas. E elas não têm renda nem ajuda alguma para isso. E esse auxílio de R$ 350 não dá pra bancar nada disso. E daí vem a insegurança alimentar. Não estamos nem falando de ter comida saudável ou estragada, mas de conseguir se alimentar.”

Amanda ressalta ainda que toda as dificuldades que o país atravessa – e que levam as pessoas da pobreza à miséria – fazem com que a maior liberdade que se possa ter agora é a de se manter viva, como fizeram nossas ancestrais.

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