Entre estereótipos e escombros

Estereótipos são como a poeira no rodapé, a louça na pia. Sempre vai ter mais

Nessa semana que passou (passou?), entre bombardeios na Palestina, depoimentos vergonhosos na CPI e mais um tsunami pandêmico com UTIs lotadas, recebo a imagem de uma menina de dez anos de idade (a idade da minha filha mais velha), na faixa de Gaza, cercada de escombros, que diz: “eu não tenho mais medo, eu só queria saber como ajudar o meu povo, eu queria entender por que eles estão fazendo isso com a gente”.

Eu quis pegar essa menina no colo, secar suas lágrimas e tentar explicar.

Mas justamente nessa semana que (não) passou, eu mesma me encontro, tal qual a menina cercada de escombros, entre o luto e a revolta, envolta em leituras sobre representações de bruxas na inquisição e tupinambás canibais, assombrada por dezenas de gravuras de mulheres amarradas exemplarmente em fogueiras, sendo queimadas vivas. Quero me colocar no colo, secar minhas lágrimas e entender: por quê?

E eis que hoje, no café, meu enteado de 6 anos, horrorizado com a notícia de um assassino em série de homens gays, também me pergunta: por quê? O que os gays fizeram?

Então tentei explicar.

Só que não há, não pode haver propriamente uma explicação, ou um “porquê”. A pergunta está, em si, equivocada. Ninguém, sob nenhum pretexto, poderia justificar um holocausto (do grego holókaustos: queimar vivo). Assim como não há justificativa para o linchamento, para a violência doméstica, para o estupro, para a escravidão. Mesmo que você tenha crescido ouvindo que “apanhou porque mereceu”, não, você não mereceu. Ele também não. Nem elas. Ninguém “mereceu”.

Mas veja que ainda soa perfeitamente aceitável a ideia de queimar bruxas, porque, veja: são bruxas. Crescemos ouvindo histórias em que bruxas morrem no final, e com elas todos os demônios. E todo o mal do mundo cessa, e arco-íris brilhantes cruzam os céus, e a paz volta a reinar e tomamos café com biscoitos. Eu não pretendo defender aqui a tese de que os livros infantis são politicamente incorretos. Mas gostaria de pensar na nossa necessidade recorrente de, historicamente, procurar um judas para malhar. Gostaria também de discorrer sobre os processos e implicações dessa prática através das imagens.

Porque, pela lógica, o mesmo pensamento que julgou aceitável e necessário que bruxas fossem queimadas, também permitiu a escravidão dos negros e dos povos originários e o linchamento de pessoas pela sua identidade de gênero ou orientação sexual.

Talvez não seja o caso de tentar responder “o que essas pessoas fizeram” para “merecer” tal castigo, mas como nos convenceram de que tais pessoas não eram mais pessoas. De que maneira construíram uma narrativa tão bem costuradinha, em que justamente o horror seria a forma preferencial de combater o mal que estava (está) encarnado, disfarçado sob forma humana (atenção para a enxurrada de termos potencialmente pejorativos) nas bruxas, nos filisteus, nos judeus, nos palestinos, nos negros, nos gays, nos maconheiros, nas testemunhas de Jeová, nos ciganos, nos chineses, nos indígenas, nas feministas, nos travecos, nos terroristas islâmicos, nos comunistas, nos apoiadores do (preencha esta lacuna com o seu inimigo político preferencial).

Perceba que o alvo é móvel. O que é fixo? A estrutura plural: “os… “, “as…”, “es…”.

Todo plural é desumanizante. “Sempre que você me rotula, você me nega”, diria Howard Zehr.

Mas agrupar é apenas o primeiro passo da desumanização.

A fórmula que segue é quase sempre a mesma:

  1. Após agrupar, rotule: crie um nome para identificar esse grupo.
  2. Crie uma imagem facilmente identificável a partir de alguma característica física, hábito ou vestimenta. Exagere nos detalhes.
  3. Associe essa imagem ao mal. Se possível, inclua crianças sendo molestadas.
  4. Divulgue essa imagem massivamente, até que todas as pessoas estejam convencidas de que, eliminado “o problema”, o mundo estará novamente em paz.
  5. Se apresente como o único ser capaz de gerenciar essa “crise”.
  6. Extermine o “inimigo” e se transforme em “herói”.

Soa familiar?

E o que a arte tem a ver com isso? Ora, a arte foi o instrumento para criar e sustentar essas imagens: entre inimigos, heróis e cidadãos exemplares, erguemos centenas de monumentos, estátuas de atletas, deuses e santidades, retratos da nobreza.

(Já disse que a arte é um trocinho perigoso? Deve ser por isso que anda trancafiada em museus… E as pessoas aí com medo da nudez… Pois eu tenho muito mais medo das imagens vestidas).

O veículo (o meio) também é a mensagem: para os deuses e imperadores: o mármore e o bronze. Para a realeza: óleo sobre tela. Para os inimigos: a gravura.

Sim, os estereótipos (do grego stereos e typos: “impressão sólida”, referia-se a um tipo de impressão em que moldes recortados eram usados para reproduzir duplicatas de placas metálicas que permitiam a impressão em massa) eram a forma mais rápida de difundir a notícia de que o mal circulava tal qual a peste.

Mas não só por isso se abusava das gravuras, é importante lembrar que não seria digno representar um escravo ou uma bruxa numa tela a óleo. Eles não eram modelos a serem seguidos, mas figuras condenadas à desaparição. O intuito desses panfletos era cristalizar esses estereótipos no imaginário popular como figuras malignas, desprovidas de alma, mancomunadas com o demônio.

Etimologicamente, a palavra “imagem” segue por dois caminhos: o eikónes seria uma forma de representação em coexistência horizontal com o objeto representado, em sua ausência: o que conhecemos como ícone. Já o eídola não se conformaria a uma existência equivalente, mas sim se tornaria superior ao objeto representado, de modo a sobrepô-lo verticalmente: o ídolo. O caminho da imagem trilhado pela religião e pela nobreza buscou desde sempre elevar a imagem de ícone a ídolo.

Um ícone, no entanto, pode perder totalmente a sua relação de semelhança com o referente e se tornar abstrato, passando a representar outras coisas que não estão exatamente conectadas ao ser vivente que originou aquela figura. É quando o eikóne se torna símbolo. E como símbolo, a imagem pode ser associada livremente e arbitrariamente com o que desejarmos que ela signifique. Para que essa operação se consolide, no entanto, este símbolo precisa ser reconhecido e aceito por muitas pessoas. Daí o poder daquelas singelas e inocentes gravurinhas de papel que cabem mais ou menos na palma da sua mão: o de se multiplicar e se espalhar como sementes de dentes de leão sopradas ao vento.

Enquanto uma pintura a óleo ou estátua de mármore só podia ser vista no seu aqui e agora, a gravura viajava por mundos tão distintos como o velho e o novo continente, atravessando a África e a Ásia e cristalizando seus estereótipos no que hoje conhecemos como a “nossa” cultura.

Note que a própria ideia de cultura vem da ideia de cultivo. A nossa cultura visual é, assim, resultado de um projeto de imagens que foram semeadas e cultivadas com muito cuidado em veículos e lugares de culto e exposição muito específicos, e não um fruto gerado espontaneamente através dos tempos.

O problema é que quando coisificamos pessoas em imagens e as convertemos nestes símbolos malignos, a consequência é, invariavelmente, o extermínio. Um genocídio precisa sempre ser autorizado por todos que pactuam com uma cultura. E o papel dessa cultura tem sido exatamente produzir e disseminar rótulos em série: quem é o inimigo da vez para que eu seja o próximo herói?

Mas a arte também pode desmistificar. Desfazer mitos e monstros. Ressignificar e nos fazer pensar sobre esses símbolos. Em 2002, o artista Christoph Schlingensief, percebendo a xenofobia pública e a nova política de ódio que se instalava na Áustria, instalou um campo de contêineres em uma praça no meio de Viena, convocando cerca de uma dúzia de imigrantes ilegais em busca de asilo político dentro deles. A performance imitava o Big Brother. No entanto, em vez de serem eliminados do programa, os candidatos deveriam ser eliminados do país.

Uma grande faixa: “Estrangeiros, rua!” marca a instalação. Nas paredes externas de cada contêiner estão as fotografias dos “imigrantes”, os seus nomes. Um outro cartaz ao lado, com o título “manual de instruções”, explica o funcionamento do jogo: “Escolha um estrangeiro. Escolha o número dele. Tire-o do país. Todos os dias, dois vão para a rua! Por favor, ame a Áustria!”

A expulsão de cada um dos 11 derrotados é decidida pelos espectadores, e a sua viagem para fora das fronteiras do país, num vagão sem janelas, podia ser acompanhada ao vivo pela internet.

As pessoas não sabiam que os “imigrantes ilegais” eram, na verdade, atores.

A pergunta, no entanto, era verdadeira: quem deve ser o próximo eliminado da história da humanidade? Vale também perguntar, enquanto queimamos pessoas vivas, que demônios estamos verdadeiramente tentando apaziguar?

Mas, agora que já conhecemos o processo de rotular e desumanizar o outro, como desfazer tantos estereótipos? É possível reverter o quadro, doutora?

Sim e não.

Estereótipos são como a poeira no rodapé, a louça na pia. Sempre vai ter mais.

O que podemos buscar (olha a minha pretensão com esse texto) é explicar para as crianças, na mesa do café, que bruxas não existem.


Para ir além

As imagens que compõem o artigo acima são reproduções de bordados feitos por Alaina Varrone: https://www.instagram.com/alainavarrone.

Imagens da Mulher no Ocidente Moderno: Bruxas e Tupinambás Canibais (Volume 1), Isabelle Anchieta. Editora Edusp. 224 páginas.

Sobre o/a autor/a

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