A banalidade, o mal e a pandemia

Diariamente, o Brasil paga o preço da banalização da crise sanitária gerada pela pandemia

Em 24 de março desse ano, um tuíte do Museu do Holocausto de Curitiba ganhou destaque nos feeds do Twitter de todo Brasil. Com mais de 40 mil curtidas, a publicação chama atenção para a triste realidade da apologia ao antissemitismo e ao discurso de ódio no Brasil: “é estarrecedor que não haja uma semana que o Museu do Holocausto de Curitiba não tenha que denunciar, reprovar ou repudiar um discurso antissemita, um símbolo nazista ou ato supremacista. No Brasil, em pleno 2021. São atos que ultrapassam qualquer limite de liberdade de expressão”.

O post do Museu descreve um aspecto singular da atualidade: como assuntos complexos, difíceis, dolorosos são debatidos, cada vez mais, de forma banal. Num período pandêmico, nos deparamos diariamente com notícias perturbadoras, mas que não despertam no leitor a revolta e indignação que deveriam.

No último um ano e três meses, essa falta de indignação assumiu uma forma singular e sem precedentes, especialmente para os brasileiros, e, mais ainda, para as cerca de 400 mil famílias que perderam entes queridos durante a pandemia.

Além de analisar como o tratamento dado às notícias sobre o atual contexto é problemático e, diariamente, nos destrói um pouco – como em manchetes de hospitais lotados, de falta de oxigênio, de escassez de vacinas -, é importante refletir sobre como a sociedade tratou de banalizar, em tempo recorde, a forma que recebemos notícias trágicas a respeito da pandemia.

Para desdobrar essa reflexão, podemos discutir essa indiferença sob a ótica do conceito de Banalidade do Mal, trazido por Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém, publicado em 1963. No livro, Arendt foca em um evento marcante na história, o julgamento de Adolf Eichmann. O interesse, no entanto, não é exatamente no julgamento em si, mas na trajetória de Eichmann desde sua formação até a conquista de uma posição consolidada dentro da máquina nazista. Nesta, ele ocupava um papel burocrático, mas fundamental: era quem organizava a logística de deportação aos campos de concentração e extermínio.

O interessante da obra, e a origem do termo “banalidade do mal”, é a descrição de como Eichmann, a exemplo da sociedade alemã, se acostumou com a ideia de um regime nazista e com a solução final. Em outras palavras, como o mal se tornou banal. Arendt explica que a banalidade do mal, que define as atitudes de Eichmann, não é algo naturalmente maligno ou perverso, mas sim consequência de alguém que cumpre ordens, incapaz de pensar no que realmente faz. É a mediocridade de não se pensar. Esse conceito se aplica quando o não pensar encontra espaço social e institucional. A partir desse momento, esvaziam-se os pensamentos e subsiste a banalidade do sofrimento humano.

É claro que, entre a realidade descrita por Arendt e o presente, o mal assume diferentes formas e facetas. Todavia, seja falando do nazismo, do neofascismo, do antissemitismo ou da pandemia, o fenômeno da mediocridade do não pensar segue nos assombrando. No interrogatório da CPI da Covid de 20 de maio, Adolf Eichmann, oficial nazista responsável pela logística de deportação durante o Holocausto e objeto de estudo desse artigo, foi comparado ao ex-ministro da saúde Eduardo Pazuello pelo senador Alessandro Vieira.

Não se pretende (nem se deveria) comparar de forma genérica a pandemia ao evento histórico do Holocausto, mas são inegáveis as semelhanças de uma banalização do fenômeno das mortes que encontra espaço institucional, numa política de escolha de quem vive e de quem morre.

Diariamente, o Brasil paga o preço da banalização da crise sanitária gerada pela pandemia. Em março de 2020, com muito menos mortes diárias, o índice de isolamento social em todos os estados era muito maior do que o atual. Um ano depois, com mais de três mil mortes diárias, nos deparamos com uma população muito mais fora de casa do que aquela de um ano atrás. Acostumou-se com gráficos de mortes subindo e índices de isolamento diminuindo, o que, somado com a falta de medidas efetivas de combate ao vírus, tornou-se a receita ideal para uma crise sanitária.

É relevante, no entanto, notar essa indiferença quanto aos índices subindo, descendo e batendo recordes, assim como o silêncio quanto a episódios de descaso que deveriam nos chocar muito mais do que nos chocaram. Exemplo disso foi o caso, relatado em abril de 2021, que revelou que hospitais militares, com leitos exclusivos para a categoria, tinham leitos de enfermaria e de UTI vazios, mesmo nos períodos em que faltavam vagas em todo país, somente porque esperavam pacientes deste grupo.

Segundo o portal IG, enquanto o estado do Amazonas possuía uma fila de 278 pacientes aguardando por um leito – sem mencionar que foi também nesse período que faltou oxigênio para intubação -, apenas 84 dos 116 leitos nos hospitais militares de Manaus estavam ocupados.

Esta, uma dentre as várias situações de descaso e indiferença do poder público frente ao avanço da pandemia, demonstra como a ausência de um pensamento coordenado para gestão de políticas públicas ganhou um espaço institucional privilegiado. A gerência da saúde pública no Brasil agiu como burocrata, tão somente cumprindo ordens e sendo incapaz de pensar no que realmente fazia e nas consequências, mortíferas, de suas políticas públicas – ou da ausência delas.

É esse não pensar, essa gestão que cumpre ordens, mas carece de humanidade e empatia, que define a banalidade do mal, como descreve Arendt. A indiferença dos gestores em meio ao caos faz concluir que a mediocridade do não pensar é o triste elo que caracteriza, de forma singular, a relação entre a banalização de uma pandemia que mata milhares de brasileiras e brasileiros diariamente e a indiferença de muitos frente ao genocídio de tantas minorias durante o Holocausto.


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