“Tenho medo de voltar e trazer a morte na minha roupa”

Pandemia afeta saúde mental dos profissionais da linha de frente em UPAs e hospitais

Há mais de um ano atuando na linha de frente da pandemia, os profissionais da área da Saúde estão esgotados. Uma pesquisa realizada pela Fiocruz, em mais de 2.200 municípios brasileiros, afirma que a pandemia alterou de modo significativo a vida de 95% desses trabalhadores. Em Curitiba, onde atualmente 100% dos leitos para Covid-19 estão ocupados e a Rede de Saúde está em colapso, a situação dos profissionais não é diferente.

“Meu último dia de trabalho foi de muito choro e na sequência procurei atendimento com uma psiquiatra.” Assim começa a história contada pela enfermeira Maria Aparecida*. Há dois meses longe do emprego em uma Unidade de Saúde da Capital paranaense, ela é uma das profissionais que precisaram se afastar do trabalho em busca de tratamento. “Tenho crises de ansiedade, me sinto exausta e deprimida”, conta.

Muitas são as causas dos problemas psicológicos e psiquiátricos que atingem esses profissionais. No caso de Maria Aparecida, ela cita que um dos principais motivos foi “a falta de reconhecimento da gestão e a forma abusiva da contagem de tempo de serviço”. Segundo a pesquisa da Fiocruz, quase 50% dos profissionais admitiram excesso de trabalho ao longo da crise mundial de Saúde, com jornadas que vão além de 40 horas semanais.

Os dados também indicam que 43,2% dos profissionais de saúde não se sentem protegidos no trabalho de enfrentamento da Covid-19, e o principal motivo, para 23% deles, está relacionado à falta de EPIs – 64% revelaram a necessidade de improvisar equipamentos.

Adriana*, auxiliar de enfermagem da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Sítio Cercado, conta que só estão recebendo os EPIs indicados para a Covid-19 os profissionais que estão lidando diretamente com os pacientes infectados. “Quem fica na emergência, ao lado da ala Covid, não recebe máscaras e pijamas apropriados”, alerta.

Para Maria Helena Machado, pesquisadora que coordenou o estudo em todo Brasil, a pesquisa mostra uma realidade muito dura. “Além da garra destes profissionais, também vemos um outro lado: eles estão cansados, muitas vezes abatidos, exaustos e um pouco decepcionados e com desesperança em relação à situação.” Muitos deles não se sentem prestigiados. “Eles não sentem que a população esteja grata com o trabalho que estão executando.” Ainda segundo a pesquisadora, isso acontece “quando os profissionais observam que a população não usa máscara ou não faz o distanciamento social.”

Medo de contaminação

Os participantes da pesquisa também relataram o medo generalizado de se contaminar no trabalho (18%), a ausência de estrutura adequada para realização da atividade (15%), além de fluxos de internação ineficientes (12,3%).
A funcionária Joana Soares, da UPA Pinheirinho, conta que com os pacientes muito próximos uns dos outros, um dos seus principais receios tem sido a contaminação. “Todos ficamos muito próximos dentro das emergências Covid da UPA. Tem ficado 5 a 6 camas em um espaço que era para ficar 3 macas a 4 macas”, conta.

Para a psicóloga Bianca Lemes, especialista em Psicologia da Saúde Hospitalar, a contaminação tem sido um dos principais agravantes da saúde mental dos profissionais. “Eles têm muito medo de se contaminar, de contaminar os familiares e muitas pessoas tem que evitar contato com a própria família, que seria uma boa rede de apoio para este momento”, afirma. “É muita pressão pra quem tem que voltar para casa, saber que pode transmitir o vírus”.

“A morte na minha roupa”

A história da auxiliar de enfermagem Carolina* também fala de excesso de trabalho e falta de infraestrutura e profissionais. “Hoje, um ano após o início da pandemia, tenho muita vontade de pedir exoneração, pois faltam funcionários e sobra trabalho, deixando a enfermagem sobrecarregada.”

Com mais de 40 anos, casada e mãe de dois filhos, Carolina conta que seu posto de trabalho foi trocado durante a pandemia e isso contribuiu para o aumento do seu nível de estresse. “No início da pandemia, a unidade de saúde que estou lotada, fechou. Fui para outra e lá vivi meus piores dias, pois estavam a população de duas unidades em uma só”, conta. “Foi então que, com o excesso de trabalho, desenvolvi uma crise de ansiedade que nunca havia sentido antes, palpitação, dificuldade respiratória, dor nas costas.”

Atualmente, medicada por uma psiquiatra e fazendo consultas psicológicas toda semana, a situação de Carolina ainda é delicada. “Já cheguei a trabalhar chorando. Tento me controlar”, disse. “Peço que as pessoas não desistam, não percam a esperança de dias melhores e sonho em poder executar com amor a profissão escolhida, mesmo com tanta dificuldade. Meu sonho é sobreviver ao caos e ficar bem”, conclui.

A enfermeira Rute, do Hospital do Trabalhador, conta da rotina numa UTI. “Eu morro de calor, não podemos ligar ar condicionado devido à contaminação. Não temos mais horário de almoço, comemos quando dá. Não temos tempo pra nada; sem contar que não somos super heróis, somos seres humanos com medo. Tenho a sensação nítida de que estou em uma roleta russa, o medo impera. Também tenho família… todos os dias saio chorando pra ir trabalhar pois tenho medo de não voltar pra minha família, ou voltar e trazer a morte na minha roupa.”

Pandemia e Eleições Municipais

A médica Amanda* conta que no início da pandemia, se sentia preparada. “A gente tinha treinamento e estávamos preparados, aguardando o caos. Mas ele nunca chegava”, disse. “Os casos foram vindo devagar. Mas em julho e agosto de 2020, eu via pacientes graves todos os dias e a gente não podia pensar muito.”

Fazendo uma análise cronológica, Amanda diz que em setembro e outubro, ainda de 2020, “as coisas acalmaram e tinham casos, mas era uma velocidade mais tranquila e já conhecíamos melhor a doença”. Até que em novembro, segundo a médica, “ninguém falava sobre os casos de Covid estarem aumentando e as pessoas esqueceram que tinha pandemia”.

Amanda liga o fato do esquecimento à época de eleições municipais. “Quando estávamos em véspera de eleição, ninguém falava nada sobre o aumento de casos. E a gente via o número aumentando e Curitiba sempre na Bandeira Amarela. Os hospitais encheram e não tinham mais planejamentos de novas vagas e treinamento de equipe.”

Foi quando se agravaram as crises de ansiedade da médica. “Minha ansiedade ficou mais complicada de controlar. Entrar num hospital e ver três pacientes, um do lado do outro, todos intubados”, conta. “De novembro pra cá, a gente vê que algumas medidas são feitas com improviso e as condições que a gente tem pra trabalhar são mais difíceis.”

Ainda segundo a médica, os profissionais têm dificuldade de lidar com a quantidade de pacientes e as escolhas sobre os tratamentos. “A gente não está preparado psicologicamente para escolher quem a gente vai intubar e a gente está tendo que fazer isto, pois atualmente, sempre há fila de espera”. No Paraná, hoje, a fila de espera por leitos de UTI para Covid é de quase mil pessoas.

“Eu precisei voltar ao tratamento, porque pensar que eu tinha que voltar praaquele lugar, pensar que eu tinha que ver aquela situação de novo, pensar que eu ia ter uma UTI com 30 leitos e com 30 pacientes intubados, 30 pacientes graves, me dava crises. Até hoje eu passo mal e tenho medo.”

“Os pacientes que se curam e saem, a gente lembra. Os que morrem são tantos que a gente às vezes pergunta quem era, mas nem consegue lembrar, de tanta gente que passou pela nossa mão. O estresse de lidar com tanta morte, a gente não tinha estudado pra isso”, lamenta Amanda.

Maioria é da Enfermagem

Os dados da pesquisa da Fiocruz revelam que a força de trabalho durante a pandemia é majoritariamente feminina (77,6%). A maior parte da equipe é formada por enfermeiros (58,8%), seguida pelos médicos (22,6%), fisioterapeutas (5,7%), odontólogos (5,4%) e farmacêuticos (1,6%), com as demais profissões correspondendo a 5,7%. Importante registrar que cerca de 25% deles foram infectados pela Covid-19.

A faixa etária relativa aos profissionais da linha de frente mais comum é entre 36 e 50 anos (44%). Trabalhadores jovens, de até 35 anos (38,4%), também possuem grande representatividade na assistência. No quesito cor ou raça, 57,7% declararam-se brancos, 33,9% pardos e 6% pretos. O levantamento indica, ainda que 34,5% dos profissionais trabalham em hospitais públicos, 25,7% na atenção primária e 11,2% atuam em hospitais privados. A maior parte está concentrada nas Capitais e Regiões Metropolitanas (60%).

*Os nomes dos personagens desta reportagem são fictícios, para preservar as identidades dos entrevistados.

Sobre o/a autor/a

3 comentários em ““Tenho medo de voltar e trazer a morte na minha roupa””

  1. Passo pela mesma situação, dentro uma unidade de saúde que virou “mini upa”. Somos coagidos “com educação” pelas autoridades sanitárias, sofremos assédio moral em tempo integral. Servidores trabalhando com poucos recursos e medo de represália. Eu e tantos outros colegas trabalhamos na base de medicação contratada. Eu tomo um benzodiazepínico antes de entrar no trabalho, para conseguir enfrentar a jornada, trabalho dopada. Como podemos cuidar da vida do outro, quando ninguém olha para nós com um olhar de ternura. Somos humanos, não robôs.

  2. Clarice Moreira Dias

    Q Showwwwwww essa reportagem.. o q faltou foi deixar bem claro para o Sistema de Saúde atual é que a Enfermagem com certeza absoluta precisa de bonificações salariais como reconhecimento por todo esforço neste momento Pandemia, bem como material Trabalho adequado, e Profissionais em números adequados pra cada setor de modo que não os sobrecarregue, é fácil falar sobre tudo isso em tempos de Pandemia, mas, a verdade é q o sistema vem colapsando a anos, mas, ninguém faz a menor questão de mostrar a verdadeira realidade dos profissionais saúde, sua desvalorização.. jornada dupla ou tripla em busca renda pra melhorar vida famíliar..etc

  3. A reportagem mostra nosso dia dia o que estamos passamos nossos medos e anseios e tbm nossas esperanças de dia melhores .
    Porém achei desnecessário expor o local de trabalho das pessoas entrevistadas.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima