Prezado amigo

Leio e ouço relatos de pessoas – principalmente artistas – contando como a música, a composição e compositores/as entraram na sua vida.

Não só no momento desta leitura, mas também busco compreender como a leitura – não havia livros na minha casa – e a música entraram na minha cabeça.

Canção de ninar!?

Na minha casa as canções de ninar eram quase inexistentes. Lembro-me de uma única canção que minha mãe – raramente – cantarolava para minha irmã e irmão mais novos: Nana, neném / Que a Cuca vem pegar / Papai foi na roça / Mamãe foi trabalhar / …

No meu caso e no das minhas irmãs e do meu irmão esse nana, neném Papai foi na roça era só uma canção. A realidade era outra: a mamãe, muitas vezes, ia junto com o papai para a roça e se não fosse estava em outros serviços que não os domésticos.

O trabalho doméstico era feito à noite – depois que dormíamos – ou aos sábados e domingos.

Música era pouco presente na nossa casa. Primeiro porque não lembro quando o primeiro rádio chegou lá em casa – se é que existia algum quando nasci – e segundo é que mesmo tendo rádio não dava para ouvi-lo: tinha que trabalhar.

O primeiro rádio que chegou à minha vida – que eu lembro – foi no final da década de 1950 e junto chegou a energia elétrica.

A energia elétrica era gerada por uma pequena hidroelétrica construída no sítio do meu nono e de seus filhos, entre os quais meu pai. O sítio era pequeno e a hidrelétrica também, tanto que a turbina/gerador era ligada no inicio da noite e desligada ao amanhecer. Ela funcionava somente para acender as luzes e ouvir rádio, que era ouvido por pouco tempo, pois em torno das 9 da noite era hora de ir para a cama. No outro dia, melhor, todos os dias, levantava-se antes das seis. Ou era antes da cinco da manhã?

O pouco de música que ouvia era de Tonico e Tinoco, Tião Carreiro e Pardinho, Pedro Bento e Zé da Estrada, Zé Fortuna e Pitangueira (e, às vezes, junto o Zé do Fole), Alvarenga e Ranchinho, Zilo e Zalo, Cascatinha e Inhana, Jararaca e Ratinho.

Nada a ver com este Ratinho e/ou seu pai aqui do Paraná. Jararaca e Ratinho traziam alegria, já os dois paranaenses constroem um futuro triste e sombrio para a maioria da população.

Essa foi minha cultura musical: música caipira, que alguns/mas chamam de sertaneja, que gosto delas até hoje.

Assim como – sem explicação aparente – fui aprendendo a gostar de livros e de ler, fui aprendendo a gostar de música, de outra música que não a caipira. Aos poucos fui “ingerindo” a bossa nova, a MPB, o samba, música clássica… e, da roça, cheguei até o rock and roll (gostou?) e recentemente o hip hop. Do funk ainda não peguei gosto nem desgosto.

Nesse universo musical esta a Inezita Barroso e depois não sei em que época entrou a Ely Camargo. Ela chegou pelos discos usados, entre eles o Série Canções de Minha Terra Vol. 4, que contém uma dedicatória assinada por Ely:

Para o prezado amigo
Denis Brean, muito
Cordialmente.
Ely Camargo
S. Paulo, 18.9.964.

Desde a primeira crônica não identifico as pessoas que “recebem” a dedicatória. Só identifico quem assina quando é pelo autor/a ou artista. Uso a primeira letra do nome.

Nesta crônica identifico o prezado amigo Denis Brean como o receptor da dedicatória, por uma razão muito simples: Denis é o compositor de uma “valsinha” chamada “No Tempo do Onça”, que Ely Camargo gravou neste disco.

O Canções de Minha Terra Vol. 4 foi gravado em 1964 – mesmo ano da dedicatória – quando tinha eu de 13 para 14 anos, época em que eu estava com Tonico e Tinoco e sua turma.

“No Tempo do Onça” – pela música – a coisa era muito simples e cheio de saudade das valsas

Valsas que tinham alegria, / Dançadas ao som de uma geringonça.

Oh! Que saudades que eu tenho, / De ouvir a bandinha do seu Thomaz, / Ele tocava, pulado, / E a gente dançando, / Achava gozado.

E a banda fazia, / Parará, / Pum… Pá, Pá, Pum… / E a banda fazia,
Parará, / Pum… Pá, Pá, Pum…

Denis Brean se chamava Augusto Duarte Ribeiro e morreu em 1969, cinco anos depois de receber esta dedicatória.

Quando comprei o disco Brean já havia falecido. Comprei-o antes do Plano do Real, paguei 4.000.00 Cruzados (Cz$). Como não lembro o ano que comprei pode ter sido NCz$ – Cruzados Novos.

Creio que não foi Brean que se desfez do “objeto” e sim algum/a herdeiro/a.

A música e o seu valor cultural – na época – ainda não tinha entrado na cabeça de quem vendou o disco. E, mais neste caso, a dedicatória é a alguém [Brean] que compôs uma das músicas gravada no LP e, quem a gravou assina-a.

Como alguém pode se desfazer deste “objeto” de cultura e memória?

O “Prezado amigo” do título desta crônica é retirado da dedicatória. Foi o jeito que encontrei de homenagear Brean e Ely Camargo.

Ely nasceu em Goiás Velho, terra onde viveu a poeta Cora Coralina e o bispo e lutador por justiça Tomás Babuíno.

Hoje – dia desta publicação – é 8 de março, Dia Internacional das Mulheres, portanto nada melhor que um reflexão:

Um dos benefícios que a opressão assegura aos opressores é de o mais humilde destes se sentir superior: um “pobre branco”… tem o consolo de dizer a si próprio que não é “um negro imundo”. […] Assim também o mais medíocre dos homens julga-se um semideus diante das mulheres.

                                                                  Simone de Beauvoir

Ao buscar esta frase juro que não pensei no – dê o adjetivo que você quiser – Bolsonaro.


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