Lia – Capítulo 59

A moça está dormindo.

É de manhã, nem tão cedo, e a luz que entra pelas frestas da cortina (aquilo ainda pode ser chamado de cortina?) traça riscos bem bonitos na roupa de cama. Um deles, na verdade, corta seu rosto da orelha ao nariz, listrando cabelo e travesseiro, passando já bem perto do olho direito. Quase triscando os cílios pretos.

Ela é de fato nova. Deve ter menos pouco mais vinte anos.

Está sozinha na cama, que não é nem uma cama de casal nem uma cama de solteiro.

Você não pode deduzir quase nada do que eu descrevo.

Ela é casada? Seu marido já levantou? Ou está viajando?

Ela é casada? Sua esposa já levantou? Ou está viajando?

Ela é solteira e mora com os pais? Mora sozinha?

Em que lugar do mundo ela está?

É um apartamento ou uma casa?

Será de fato a casa dela?

Ela parece estar em paz. Parece saudável. Parece… feliz…?

Mas as pessoas jovens tendem a parecer felizes quando dormem. Tendem a parecer quase angelicais. E ela ainda está nessa faixa de idade. Isso eu disse.
Sobretudo, que nome ela tem?

Quem, mas quem é ela?

Que cheiros tem esse quarto? Que cômodos se ligam a ele? O que está do outro lado da janela? Prédios que você não reconhece, carros que nunca viu (carros?), pessoas que simplesmente não existem, com bichos de estimação que você não imaginaria…?

Eu posso te dizer que não há ruídos. Fora pássaros. Sempre há o som dos pássaros. Desde que você preste atenção.

A moça da cama, eu posso adiantar sem fornecer maiores informações quanto às dúvidas que levantei antes, tem os dois pais vivos (casados ainda? morando onde??). Dos seus quatro avós, sobrevive apenas um, e ela, na infância, conheceu somente três.

Dos seus oito bisavós ela ainda conheceu um. Uma, na verdade. Dona Arminda, mãe do pai de seu pai. Mas lembra muito pouco. Lembra quase nada.

Os outros sete são apenas ideia. E ideias que ela quase nunca tem. Não lhe ocorrem.

Mas cada um deles existiu, para que ela estivesse ali agora dormindo assim tão leve, assim tão lindo. Cada um deles passou por uma vida inteira (tão breve, no caso do pai do pai de sua mãe), teve dores, dissabores, teve glórias, memórias, histórias inteiras. E cada uma dessas coisas foi, a seu tempo, a coisa mais importante do mundo para cada uma daquelas pessoas que hoje são apenas as barras do estrado dessa cama que talvez nem tenha estrado.

Cada um deles existiu inteiro. Real. Em carne, sonhos e espera.

Um deles foi Lia.

Sobre o/a autor/a

Rolar para cima