Prazer, assombração

Eu vou continuar a conversa do texto anterior, mas mudando o registro e recuperando a compostura. Já escrevi muito, mas muito mesmo a respeito de leitura-livro-sujeito-leitor, e se eu reunisse tudo conseguiria formar um ou uns livros. Hoje faço o exercício de inaugurar outra perspectiva, a partir da qual nunca escrevi. É um ensaio para mim mesmo e agradeço se você me acompanhar e for compreensivo quanto às lacunas, ou melhor – ou pior –, quanto às impropriedades. Acho, e isso já tem a ver com leitura, as impropriedades piores do que as lacunas. Para falar a verdade, quem se move sem o espaço das lacunas? Ruim é viver na impropriedade – sem se apropriar do próprio desejo, por exemplo.

Como disse o escritor Pierre Rey, “os que têm tudo não têm grande coisa”.

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O debate sobre livro, leitura, ensino de literatura no Brasil é bem antigo e eu faço parte de pelo menos vinte e cinco anos desta discussão, como estudante, depois como estudante de letras, professor de língua portuguesa no ensino fundamental, professor de literatura no ensino médio e no ensino superior, na pós-graduação, como aluno de especialização em leitura de múltiplas linguagens, depois em psicologia clínica com abordagem psicanalítica, ainda como aluno do mestrado em estudos literários. E como leitor, tradutor, escritor etc. Quer dizer, toda a minha minibiografia oficial tem a ver com leitura.

Esgotar o assunto é meio impossível. Eu mesmo seria capaz de, logo após esse texto, escrever outro rebatendo meus argumentos. E de ficar indeciso sobre qual das versões me convence mais. Ler literatura contribuiu para que eu fosse assim, poroso aos múltiplos modos de receber a realidade e de recriá-la, o que implica uma demora maior em tomar decisões, uma relação mais fluida com a certeza, um acolhimento da verdade como algo que pode ser provisório. Isso irrita o mundo pragmático (e, vá lá, me irrita às vezes também), porém evita o imperativo da certeza sólida a se chocar na esquina com outras certezas sólidas, sem síntese, sem aceitação de contraditório, sem embate civilizado. Basta pensar no que acontece quando dois ou mais fundamentalismos colidem.

Ler literatura exige um certo vagar (seja como verbo: andar meio sem um rumo planejado pelo leitor, mas pelo livro, seja como substantivo: a lentidão própria da degustação – sem pieguices aqui, mas sim, o saber tem um sabor e tal) que nos dias de hoje é revolucionário. Abrir um romance hoje é um ato de resistência. Ler, então!

Vou aqui me ater apenas a um fator: o prazer. Um dos princípios que nos guia é o princípio do prazer, e prazer é significante cheio de camadas quando visto de perto. Podemos pensar no prazer dos sentidos quando vemos, ouvimos, cheiramos, saboreamos, tocamos algo que erotiza o corpo, pervade o real do corpo, sem muita mediação de linguagem (porque o simbólico da linguagem e as projeções do imaginário podem sim interferir no prazer do corpo: o som do mar que embalava o sono é outro se descobrimos que não vinha do mar, mas de um transformador de energia no poste da esquina?). A experiência estética – estesia, o primado dos sentidos – pode se dar antes de conseguirmos explicar com palavras por que gostamos ou não de uma obra artística, por exemplo.

Falar de prazer evoca ainda o prazer sexual, algo que mereceria discussão à parte, de tanto que ele conjuga o real do corpo com o simbólico da linguagem e as projeções do imaginário (Real, Simbólico e Imaginário são elaborações de Jacques Lacan das mais importantes para a psicanálise depois de Freud). O prazer sexual tem a dimensão tátil, visual, etc (nesse etc cabem os demais sentidos que lhe dão prazer em um ato, pense neles), mas é também feito de palavras sedutoras e de imagens que preenchem o outro conforme os sentidos que existem dentro de você, mais do que dentro do outro. Claro, o vice-versa entra em cena aqui, uma vez que você elege seu objeto de prazer porque projeta nele espelhamentos de si, mas também o outro espelha em você as projeções dele. Você é objeto do seu objeto a partir do momento que seu objeto é sujeito de desejos.

Mas o assunto não era livro-leitura, sujeito-leitor? Há relação entre a erótica do corpo e a leitura de livros? Há. Também no livro o leitor projeta de si, também colhe os significantes do outro, lendo-os de seu jeito singular, sejam os significantes que saltam encadeados do papel (o texto em si), sejam os que saltam dos discursos externos já elaborados sobre o livro, que saltam do próprio corpo do livro, a gramatura do papel, o formato, a diagramação – quem nunca ouviu ou usou a expressão comer, devorar um livro? –, ou ainda do status que a leitura pode conferir ao leitor, pelos motivos mais aos menos nobres que ele escolhe ostentar ou esconder.

Podemos ainda pensar o prazer do ponto de vista da diversão, e eu diria, num exercício livre de brincadeira poética (vou manter a redundância), que a di-versão, essa espécie de versão cindida, divide-se em uma versão que toma o caminho da distração e outra que toma o caminho da subversão. Quando queremos comparar a leitura do literário à diversão do tipo distração, como se fosse da mesma natureza de um jogo no celular, de uma sequência de vídeos fail que mostram tombos engraçados, de animais que fazem fofices ou trapalhadas, acho que tomamos o caminho errado. A literatura, a leitura do literário não é concorrente da diversão do tipo distração. Se quiser concorrer, vai perder. Dis-tração vai me lembrar – sem rigor etimológico aqui – distensão, relaxamento da tensão, da tração. De modo que mil partidas de Candy Crush, ou mil vídeos de tombos engraçados ou de bichinhos não podem entrar na mesma balança das, por exemplo, mil páginas d’Os irmão Karamázov. Se entrar na balança da diversão-distração, Dostoiévski perde de lavada.

Se entrarem na balança da diversão-subversão, a turma dos distratores será perdida de vista, catapultada do prato da balança. Entendo aqui a subversão como a irrupção de uma versão escondida, à sombra (ou assombrada) da (pela) versão aparente clarificada pelos discursos soberanos. Ou, também, como uma criação do sujeito. Maior a força com que o discurso soberano se impõe, maior a facilidade com que ele se instala e senta sua bunda grande sobre verdades que lhe convêm, solidificando-as, compactando-as. Logo, mais difícil será fazê-lo levantar-se, mais difícil será arejar, arar a terra sobre a qual tal discurso estava sentado. Podemos pensar no discurso soberano das instituições políticas e do mercado, por exemplo, assim como no discurso soberano do eu da consciência, o Ego, carregado muitas vezes de medo e angústia, produzindo sintomas de sofrimento psíquico que não dão chance à descoberta do desejo.

Tudo parece bonito e desejável na sub-versão, só que enxergar o assombrado, intuir outras verdades, descobrir ou forjar novas formas de existir geram inconvenientes: você pode ser visto como excêntrico – ou só como idiota mesmo –, ou pode então se assombrar consigo mesmo e a si mesmo (assombrar: assustar e fazer sombra) ao se perceber habitado por pensamentos ou forças não detectáveis pelo radar da consciência, pensamentos ou forças que você desconhecia, escondia ou condenava. É incômodo subverter-se (não me parece incômodo distrair-se), incômodo para os outros, incômodo para você, e nesse movimento pode haver recuo, autocensura, mas também a descoberta de um outro espelho, diante do qual surge um narcisismo não patológico, mas que provoca um deslocamento da imagem (ideal) que se tinha do eu. Não se trata apenas de achar feio o que não é espelho, mas de achar bonita no espelho uma nova imagem de si, com novos laços tecidos a partir da versão que ora se revela ou se cria. Não à toa a teoria literária fala em relações de identificação e estranhamento diante de um livro. Veja, não é identificação ou estranhamento. O livro é um outro que, se recebeu nosso investimento libidinal, espelha o que somos ao mesmo tempo em que assiste a nossa transformação (deixei o a intencionalmente sem crase, lembra das aulas de português, regência verbal, verbo transitivo direto e indireto? Faz diferença).

A leitura é sempre uma oportunidade de reescrita.

Falei de aspectos intrínsecos ao texto literário, com sua lâmina capaz de abrir fissuras no mundo instituído do leitor e de oferecer a ele realidades complexas tanto pelo enredo, no caso das narrativas, quanto, sobretudo, pelo uso inventivo da linguagem e de como o conjunto de significantes afeta o mundo singular do sujeito. Há, evidentemente, aspectos extrínsecos ao texto, que tratam da precariedade da alfabetização, da incompreensão primária de um texto simples e, claro, do modo como a literatura é trabalhada na escola, tema que motivou essa minha dupla de escritos – e de que eu acabei nem falando!

Que ao final de uma grande leitura, possamos nos deslocar a fim de deixarmos brotar – debaixo de nossas certezas tão claras e por vezes atravancadoras – o que estava sendo gestado à sombra, o que estava assombrado pelo Outro, por nós mesmos.

E possamos falar sem medo “prazer, assombração”.


Para ir além

O diabo roga praga – inconclusões sobre leitura e literatura

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