Solução de Dois Estados, de Michel Laub

Uma moeda de três reais ou a dicotomia viva?

Uma das palavras da moda para investigar o que tem ocorrido no país é “polarização”. A polarização carrega alguns sentidos: dicotomia, antítese, o que é antípoda, antinômico, o que tem ideias em espelho e, ultimamente, tenho ouvido e lido “dialético” com esse sentido de oposição.

A oposição não é método, mas um modo de “ler” a situação política mesmo. Prova comum disso é a imaginação moderna quando esta entende a política como uma luta de “direita” e “esquerda” ou de “bem versus mal” (o que joga o pensamento para uma antiguidade que se perde na noite do Tempo). Pêcheux, em seu famoso texto sobre o discurso (seria uma estrutura ou um acontecimento?) compara esse tipo de discurso (A versus B) com aqueles que surgem nos campeonatos de futebol.

Pierre Ansart, por sua vez, intui que os próprios sistemas ideológicos criam uma situação de oposição, para o bem e para o mal da análise. Obviamente, Ansart sabe que certa situação política não é um jogo de damas, em que peças escuras são “inimigas” das peças claras. Partindo de Tocqueville, ele argumenta que nas situações limite das grandes tensões políticas, “as paixões artificiais seriam periodicamente sujeitas às crises emocionais nacionais” (ver p.s).

Esse Solução de Dois Estados, portanto, pode ser lido de dois modos distintos, basicamente. Ou se lê o livro como uma obra que trata da situação política atual como uma dicotomia, uma polarização, e a subsequente crítica a esse estado, ou se lê o livro como registro da complexidade discursiva dessa mesma situação política e a crítica a essa situação.

Com risco de ficar datado, o autor escolhe dois personagens centrais, que se opõem: são dois irmãos, um casal. O homem representaria a direita (é machista, seguidor de um pastor, com uma visão de mundo conservadora, para dizer o mínimo, um fascista, para dizer o máximo). A moça é uma artista performática, obesa, que se utiliza do que se convencionou chamar no mundo das artes contemporâneas de “pornoterrorismo”, termo que não é usado no livro. Ele seria a direita e ela a esquerda; ele seria o bolsonarismo e ela representaria as esquerdas progressistas. E há uma terceira personagem, uma cineasta alemã, que bem poderia representar o olhar europeu, particularmente europeu, sobre nós.

Sobram críticas para ambos os lados, a direita e a esquerda. Ambas as personagens centrais são mostradas como egocêntricas ou ególatras. Ambas não estão minimamente ligadas aos verdadeiros problemas sociais, e, embora seja de se esperar que o rapaz fosse o mais criticado, pois afinal é um fascista, não: a artista é pintada, descrita, desenhada com o mesmo tom de crítica. E claro, sobra para a cineasta, cuja voz, em determinado ponto da narrativa, a despeito da crítica ao olhar estrangeiro, parece a coisa mais sensata que ali existe.

Se o Autor (vou usar letra maiúscula porque estou pensando no Michel Laub cidadão brasileiro e na relação construída por Bakhtin e Foucault sobre a noção de “autor”) quis criticar a todos, inclusive a outra base de um tripé imaginário, em que surge a cineasta alemã, nem direita nem esquerda, mas que simbolizaria o (ordo)liberalismo de Angela Merkel, o livro é um problema. Se é um romance-tese, se é um romance-político, se é um romance-engajado, esses tiros para todo lado são beeeeem questionáveis e explico a razão: o discurso de que a esquerda é o outro lado da moeda do bolsonarismo e do fascismo é mais falso que uma moeda de três reais.

Manifestações de junho de 2013 serviram de estopim para o acirramento entre direita e esquerda no Brasil. Crédito da foto: arquivo.

Gostaria piamente de acreditar que a crítica de Laub não passa por isso: o discurso da moeda falsa. Isso fica melhor nas “análises” de Miriam Leitão.

Não que a crítica à artista performática seja de todo questionável. As artes contemporâneas muitas vezes ficam tão distantes do público que perdem a razão de ser e carregam uma pseudo erudição enervamente, que só tem sentido para alguns curadores, alguns galeristas e museus a contar em uma das mãos. No entanto, é um dos únicos espaços de discussão possíveis, num país em que a cultura erudita está numa UTI sem oxigênio porque ele foi desviado pelo próprio governo.

Como disse acima, o livro corre o risco de ficar datado, porque menciona situações bem recentes da história brasileira: a subida ao poder do que há de mais podre na cultura brasileira, a exposição patrocinada por um banco e que rendeu as mais alucinadas manifestações (de quem nunca havia posto os pés num museu), o franco crescimento do poder nas igrejas neopentecostais, etc. Isso é imensamente relevante. A seu favor, eu diria que há obras políticas em português que jamais perdem sua força, seja Esaú e Jacó, seja Quarup. No entanto, essas obras que eu citei não são literais; são simbólicas, e isso, o símbolo, a metáfora, a possibilidade de leituras múltiplas, tudo isso é obrigação da boa literatura. Não sou vidente – nenhum crítico é – e por isso até fico curioso para saber o que ocorrerá com esse romance no futuro.

Machado de Assis, autor de Esaú e Jacó. Crédito da foto: reprodução.

Não me admira que o livro tenha causado furor desde sua chegada às livrarias. A começar pelo título: a palavra “estado” tem múltiplos sentidos mesmo, o que acaba não encontrando eco no decorrer do romance.

Já havia comentado aqui que Michel Laub estrutura seus romances com essas dicotomias, o que, por um lado, é uma boa estratégia de escrita e, por outro, é um risco, um risco da vulgarização. A vantagem que ele tem em relação a outros autores de sua geração é a agilidade para diálogos e referências diretas, as quais, creio, atingem em cheio o leitor, que pode se sentir representado. Digamos que esses romances dele, em particular este de que falo, têm muito das tensões que ocorrem diariamente no Face, nos grupos de Whats, e agora até no Insta. No Twitter ainda mais. Você pode gostar ou odiar.

E vale a leitura, para que você prove que estou redondamente enganado.

Post s.: sobre o uso do corpo obeso nas artes, aconselho o trabalho da artista Fernanda Magalhães. Sobre pornoterrorismo ou pós-pornô, imprescindível a leitura de Diana Torres. Sobre transgressões como discurso, obviamente Preciado. A leitura de Ansart (que passa por Tocqueville) devo à tese de doutoramento do pesquisador Ozias Paese Neves.


Para ir além

Solução de Dois Estados, Michel Laub. Editora Companhia das Letras, 248 páginas. R$ 35.

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Sobre o/a autor/a

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