Lia – Capítulo 72

Hoje a maioria das pessoas, na maioria das situações, vai se referir a ele como alho-poró. E ele é muito mais conhecido e muito mais usado na cozinha do que nos tempos da infância de Lia, por exemplo. Alho comum, sim. Cebola, cebolinha, sim. Todos parentes, aliás. Todos da mesma família.

Mas o alho-poró era um completo desconhecido. Infelizmente. Isso quando Lia nasceu, e durante os seus primeiros anos. E, mesmo que alguém porventura fosse usar, ou apenas mencionar o vegetal, o mais provável era que se referisse a ele como alho-porro, nome que está em uso na língua portuguesa desde pelo menos o século catorze. Ou seja, quase desde que o português se conhece por gente.

Foi justamente com o crescimento da familiaridade das pessoas com ele que seu nome passou a se alterar um pouco. De certa forma graças ao mesmo tipo de modismo cabotino que faz com que pessoas que podiam muitíssimo bem continuar temperando com o simples, simpático e conhecido manjericão tenham, de uma hora pra outra, começado a usar basílico.

Mas isso tudo foi muito depois, quando Lia já era uma senhora. Mãe. Avó.
No tempo em que ela não conhecia alho-poró e, se conhecesse, conheceria apenas alho-porro, manjericão era manjericão. E menos comum que manjerona.

A tendência de modificação do nome, no caso do alho-poró, parece ter tido a ver com uma espécie de pudor. Com o fato de que aquele porro parecia demais com um certo palavrão cuja origem, de fato, parece ser essa mesmo. O formato da planta lembrou uma outra coisa que… enfim.

As pessoas passaram a preferir comprar alho-poró.

E o alho-porro foi esquecido.

Quando Lia, adulta, mãe, inventou de inventar uma adaptação da torta salgada de sua mãe (originalmente chamada de torta surpresa no caderninho que herdou) e quis incluir o tal vegetal, o que ela comprou no mercado municipal foi alho-poró, e o que usou na torta, que virou um sucesso com sua filha, foi mesmo alho-poró.

Lia fez uma forma grande, elas, juntas, comeram quase metade na noite de uma quinta-feira. Foi a primeira vez, depois daquilo tudo, em que Lia se sentiu mãe como sentia que sua mãe se sentia mãe. Tinha inventado um prato, feito para a filha, e as duas comiam juntas. Uma, satisfeita com a satisafação da outra e deslumbrada com algo completamente novo, a sensação de ser uma adulta plenamente capaz de cuidar de uma criança sozinha. A outra, deslumbrada com algo completamente novo. Alho-poró.

Mas ela era pequena demais para guardar o nome, e quando na sexta-feira, voltando da escola, viu a cesta de pão em cima da mesa, não conseguiu guardar sua frustração. Lia, inocente, tinha pensando em variar os pratos para a menina não cansar da novidade. Mas a filha tinha opinião diferente.

— Não tem mais aquela torta de ontem?

E dali em diante a “Torta surpresa” adaptada por Lia ficou conhecida, por décadas, como “torta de ontem”. E continua. Mesmo depois de Lia não estar mais aqui. Ainda hoje sua neta pede assim a torta que anos depois Lia ensinou a filha a fazer. Anos antes de ela também ser mãe, e de ter de passar por todas as etapas que transcorrem entre dar à luz e efetivamente se sentir capaz de ser mãe de alguém.

É por isso, também, que o próprio vegetal mudou de nome entre as três Lias.

Quando se trata de ir às compras para fazer uma Torta de Ontem, elas, claro, lembram de pedir alho-poró à Mônica, no mercado. Mas, entre elas, naqueles momentos só entre elas, em casa, em volta da torta, só se referem ao alho-poró pelo único nome que teria o ingrediente principal da torta que de alguma maneira é a linha comum entre mães e filhas daquela família. Entre passado e futuro. O ingrediente principal de uma Torta de Ontem.

— Mãe, não tem mais Ontem.

Sobre o/a autor/a

Rolar para cima