Leão

Os respingos de tinta e as manchas escuras da pele envelhecida se espalham pelo dorso das mãos. Das unhas facetadas pende o pincel mais fino, com que faz a linha final do pêssego da parede contra o branco impoluto do teto.

Trabalha sobre uma escadinha de madeira, também ela sarapintada por décadas de pinturas. Franzindo o cenho, olha para cima com a cabeça bem erguida, a fim de usar a parte inferior das lentes bifocais de seus óculos. O grande nariz de francês é a barbatana de um tubarão já cansado de lutar por comida. Usa o boné de algum dos netos, talvez eu, onde se lê: “Bamerindus, o banco da nossa terra”. Veste a calça jeans velha, que nem no varal deixa de ter joelhos; a camisa social puída; os sapatos ressequidos, que em outros tempos só usava uma vez por mês, para ir à Caixa buscar a mísera aposentadoria.

Minha avó, que chamamos de oma, em alemão, surge da cozinha atrás dos vapores de duas panelas fumegantes.

– Robert, komm essen!, ordena.

Ele desce a escada devagar. Mais de sessenta anos, tantas escadas. Tira o boné e tenta cobrir a calva com os longos cabelos brancos que ainda resistem do lado esquerdo da cabeça. Sua careca brilha sob o arado grosso dos dedos. Limpa os óculos na camisa – os olhos desfocados contaminam as sobrancelhas de lobisomem encanecido de um azul volátil.

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Desço a escada, devagar. Quase cinquenta anos se passaram entre as paredes que continham meu mundo infantil e estas, que pinto agora. Meu avô e minha avó há muito habitam o érebo. Eu mesmo já me aproximo da idade que tinha o avô, naquele começo dos anos 70.

Examino a linha que fiz entre a parede cor de pêssego e o teto (branco, impoluto). Não é perfeita como a do minucioso Leon Robert, mas não está mal.

Tenho fome, é quase hora do almoço. Seria bom se a oma saísse agora da cozinha deste apartamento com duas panelas velhas, areadas até restarem só as manchas mais renitentes, os pontinhos antigos que dão à mesa o calor de uma longa vida em comum. Me olhasse então com aquele olhar de censura prévia, sob as papadas severas que iam das pálpebras superiores às sobrancelhas.

– Marcos, komm essen!

Isso é impossível, eu sei. Vivo em Portugal, estamos separados pela massa imensa de águas e seres secretos do Oceano Atlântico. Estamos separados por meio século, pelo esquecimento que pousa sobre os fatos como pó recobrindo brinquedos guardados num porão. Pelas arbitrariedades da memória. Pelo caudal cego e furioso da História e, por fim, pela linha abissal que abstrai os vivos dos mortos – os antigos vivos dos futuros mortos.

Decido que, antes de fazer o almoço, vou arrematar os rodapés da sala. Troco de tinta, de pincel. Enquanto com um pedaço de cabo de vassoura agito o branco cremoso da lata, vejo Leon como eu agora, de joelhos sobre o papel que protege o piso. Lembro-me da fragilidade quase obscena de seus joelhos juntos…

Leon era o pater familias que minha avó e minha mãe nos faziam cultuar e que, desde que se aposentara, desde que deixara de ser o lacônico mecânico de aviões da Varig, esgueirava-se pela casa fazendo pequenos serviços domésticos. Com uma velha escova de dentes, limpava as frestas escurecidas do box do banheiro. Apertava os cabos das panelas e as portas do armário de fórmica usando chaves precisas. Reparava com massa corrida as rachaduras dos muros, que pendiam na tarefa de nos separar de ciganos, tarados, cachorros loucos, bêbados e ladrões. Andava pelo telhado a passos de faquir, para trocar telhas trincadas, desentupir calhas, ajustar o ângulo da antena externa da tevê. Cortava a grama com uma máquina mecânica, um pesado cilindro de lâminas que mascava as folhas e invariavelmente engripava.

À noite ele assistia ao Jornal Nacional. Enquanto não acabassem as notícias da mídia da Ditadura Militar sobre a Guerra do Vietnã (mães de americanos sofrendo, vietcongs tombando como folhas sob nuvens de Agente Laranja), devíamos guardar respeitoso silêncio.

Leon foi à época uma espécie de fantasma ativo, o homem bom, o soldado raso do patriarcado encolhido em sua organizada pobreza de aposentado, sem o cetro da chave de boca com que garantira aviões comerciais no céu do Brasil.

Até o fim da vida deixaria a casa um brinco, pintando, consertando, limpando, em silêncio, a casa da esquina na Vila Formosa, nosso bunker de ordeira submissão.

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Já não pinto paredes. Pinto memórias. Almoço memórias, tal qual esta couve-flor, este aleph borgiano. Feita por minha avó, seria envolvida numa massa de farinha de trigo e ovos e, frita, rescenderia aos enormes seios maternais que abafavam os gritos dos jovens mortos pelos militares país afora, a cachorros loucos, a Nixon, ao mutismo do mecânico de aviões, à iminência de um ataque nuclear, a noites de estudo decorando fórmulas que evaporariam da mente após a prova.

Sem a pletora de sons, cheiros, imagens e dramas frescos da cena infantil, rumino agora, quieto e só, o couve-flor da fugacidade dos dias, enquanto repinto a parede cor de pêssego como quem recobre uma ausência.

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