Barco na chuva

Por entre as nucas das pessoas à minha frente, estáticas como eu diante da vidraça da estação de barcos do Barreiro, o Fernando Namora descreve um arco, estaca próximo ao cais e força, virando seus jatos potentes, a aproximação lateral. Um marinheiro com ar de burocrata faz voltas com os cabos de amarre nos cabeços do atracadouro como se assinasse um despacho. As rampas de embarque descem sobre o piso com seco estrondo metálico. As portas de vidro se abrem e as pessoas avançam, abúlicas como gado no brete, através do píer estreito. Sigo-as, sabendo que por um tempo não poderemos manter distância, calcando o medo sob uma objetividade necessária. Mas estamos todos de máscara, o que torna ainda mais opressiva esta marcha de trabalhadores rumo aos comércios de Lisboa, onde, sob o olhar de soslaio do chefe, farão coquetéis de bourbon e lemon bitter, servirão fumegantes travessas de bacalhau à brás, limparão pisos de imponentes e modorrentas secretarias de Estado, se ajoelharão para tentear com o dedo o bico do sapato da madame em dúvida.

Busco um lugar à frente, no piso inferior. Consigo me sentar diante da janela frontal, de onde vejo o Tejo sob a gaze da chuva. Um rapaz de cabeça raspada e jaqueta da Nike, ouvindo algo que o torna abstrato através dos fones de ouvido, senta-se a duas posições de mim. Está bem assim, apesar de haver gente atrás. A Covid, penso, impõe essa coisa horrível de medir lacunas entre os corpos. Sofremos mais por falta de casualidade do que pela sensação áspera de ir para o trabalho com uma focinheira. Isso de não poder me aproximar dos outros é como estar suspenso em mim. Também não gosto da desconfiança permanente de que alguém é mais doente do que eu. Ou mais displicente ou menos suscetível ou mais mortal.

O Fernando Namora navega no silêncio grave de sua rota comercial de homens. Atravesso um rio grávido de histórias que apodrecem em seu útero como papagaios e bananas que, um dia, foram trazidos de um exotismo submisso para despertar a curiosidade flácida de um rei debiloide. Atravesso páginas de Camões, Bocage, Lord Byron, Fernando Pessoa. Atravesso o rio que atravessa a vinda deslumbrada e violenta de fenícios e romanos, pilhadores de toda laia, como sir Francis Drake e os corsários de Napoleão. O espectro de navios negreiros e caravelas pesadas de seda, ouro, esmeraldas, canela, gengibre turvam estas águas que o Fernando Namora singra, deslembrado.

Chove, fagulhas lavam os vidros embaciados (alguém tosse e nós, mascarados, olhamos para o possível emissor do vírus). Gotas dedilham nos vidros do Fernando Namora, esse nome que ama e empalidece num barco branco perdido na névoa.

Há uma garota de uns vinte anos na coluna do meio, logo à frente de mim. De suas pernas cruzadas pende um tênis azul, um tornozelo fino cuja fragilidade é um respiro de erotismo em meio à massa amorfa. Ela percebe meu olhar de lobo encanecido, descruza as pernas e liberta um discreto suspiro de enfado. Refreio o desejo de dissolver-me em sua beleza como um leque momentâneo de espumas sobre pedras morenas.

Estamos saindo do barco, mas não sei para onde vou. Tenho muitas coisas a fazer. Meu senso de utilidade, porém, perdeu-se no rio, na chuva, na melancolia de um dia comum.

Novamente as rampas e sua decisão metálica. O píer estreito. Lisboa, os edifícios de uma arquitetura cristã impiedosa, docemente envelhecida. Lisboa, este exílio que aprofunda o mito da vida que tive em outras terras, se é que tive, pois tudo já se encaminha para o presumido da fábula.

Não quero fazer nada. Vou inventar mentiras breves e críveis, procrastinarei. Amanhã corro atrás da merda do dinheiro. Hoje não, hoje andarei pelas ruas chuvosas, por entre vultos fugidios de guarda-chuva, em busca desse nada que tanto me falta.

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