Ecossistema

Estava de costas para a porta da rua folheando o jornal, debruçado sobre o balcão grudento daquela espelunca que há tempos deveria ter sido fechada pela Vigilância Sanitária, quando sentiu a primeira pancada. Na nuca. Alguém que sabia bater. Quando se virou, recebeu a mesma força no plexo solar. O impacto foi transferido para a musculatura do diafragma, e imediatamente o fornecimento de ar para os pulmões cessou. Estava rendido. Dali em diante, tudo o mais era a estupidez de uma demonstração de força desnecessária. O pânico esguichou em seu cérebro, como o sangue de uma artéria que se rompe. Paralisado, sofria de um derrame de medo e atordoamento, um cão sob o bombardeio sonoro de fogos de artifício. O soco fez seu corpo dobrar-se. Ato contínuo, recebeu mais uma violenta cotovelada na cabeça. Cambaleou. Em seguida, um pontapé tão forte entre as pernas o fez ter a sensação de que seus testículos subiam à altura dos rins. Tentou pensar rapidamente e avaliou que era melhor cair de uma vez. No chão, a cara colérica de Gaúcho avolumou-se acima da sua, o personagem novo que sem mais nem menos irrompe num pesadelo. Passou a sentir o contato dos ossos das mãos dele, os nós de seus dedos contra sua boca, os lábios sendo estraçalhados contra os dentes. Afinal, não tinha mais certeza se os dentes estavam ali. Quando Gaúcho saiu de cima, os três homens terminaram a carnificina. A caixa torácica fulminada por chutes, dentro dela as vísceras chacoalhando brutalmente de um lado para outro; um bombardeio na terra já arrasada.

– Agora chega – anunciou Gaúcho.

Os homens se afastaram do corpo inerte. Gaúcho se aproximou, fechou o punho em torno do colarinho de sua camisa e ergueu seu tronco a dois palmos do chão. Seu rosto em sangue ficou muito próximo do dele. Os olhos estavam fora de foco por conta da pancadaria. O rosto de Gaúcho era indefinido, visto através de uma vidraça bafejada. Um ódio vivo; podia sentir o cheiro do ódio no seu hálito, misturado aos restos de comida que fermentavam ali.

– Semana que vem – disse. – Semana que vem, eu vou crucificar você de cabeça pra baixo. Não me tire pra lóki.

Gostava de ser dramático, o Gaúcho. Mas era razoável não duvidar. Em se tratando de violência, aqueles caras tinham a força moral de um motor a diesel. E na semana passada um sujeito aparecera dependurado num poste numa vila qualquer.

Gaúcho também detestava palavrões. Era um traficante estranho. No fundo, não era uma pessoa de todo ruim. Por isso o pegara pelas costas. Se permitisse que ele abrisse a boca, acabaria sendo convencido. Ele era um filho da puta persuasivo. E ele, o Gaúcho, tinha o coração um pouco mole, ele achava. De forma alguma era uma pessoa especialmente ruim.

Pelo menos, não era tão mais ruim do que qualquer outra poderia ser, se pressionada da forma correta.

Gaúcho e seus blue caps saíram, deixando no chão o corpo desfalecido, uma massa humana que precisava ser reanimada.

***

Com as costas apoiadas no balcão nojento – o mesmo balcão –, escrutinava a praça em frente. O sol do meio-dia refletia no concreto da gigantesca estátua de um homem nu sem pau. Que coisa ridícula, ele pensou. Se fossem assim tão moralistas, que colocassem no homem nu um shorts, uma sunga que fosse, mas um homem nu sem pau era de fato uma coisa muito triste. Havia uma atmosfera de feriado no ar. Era suficiente para deixar a maioria feliz. O que é a felicidade, quando não se alegrar com coisas idiotas?

Com dificuldade, ele alcançou o maço de Marlboro vermelho no bolso do jeans e sentiu dezenas de músculos acusarem as dores da convalescença, o registro da surra no corpo espancado. Ainda não estava totalmente recuperado, mas precisava trabalhar. Fora a dor física, não tinha ressentimentos. Todos precisavam pagar as dívidas, e Gaúcho não estava no topo da cadeia alimentar. Às vezes, alguma brutalidade era necessária para rearrumar as coisas. Não teria acontecido se ele vendesse a mercadoria, em vez de cheirá-la.

Não havia grande dilema ético em machucar a carne de alguém, quando necessário. A conta era simples: a carne se recupera, a dor passa, o homem segue em frente. Tinha mais dúvidas em relação a assassinato. Homicídios eram por natureza incorrigíveis.

Eram todos unidades de uma falange, com alguma liberdade de movimentação, mas não total. O mundo é um emaranhado complexo, um sistema muito confuso de pesos e contrapesos para que você possa cogitar controlar o que quer que seja. Na maior parte do tempo, reage a estímulos, por reflexo. As pessoas apenas fazem o que precisam fazer. Com frequência, o que elas precisam fazer é bater em alguém.

Para aquilo dar certo, ia precisar ignorar a dor no momento devido. Não era difícil. Conseguia lidar com a dor. Se você sabe de onde ela vai vir, é perfeitamente possível suportar a dor sorrindo.

Se fizesse tudo certo – e tivesse um pouco de sorte –, uma dezena de golpes durante quatro dias em diferentes agências bancárias espalhadas pelo centro, era provável que conseguisse arrecadar boa parte do dinheiro. Com uma boa parte, Gaúcho lhe daria mais uns dias. Ele tinha lábia; Gaúcho, coração mole.

Por ora, tudo parecia bem. Só uma viatura, num ponto extremo da praça, o mais longe possível da esquina da agência bancária; dois policiais, meio sonolentos na modorra do calor. Sabia que generalizações eram perigosas, mas se sentia razoavelmente seguro para pensar que todo PM era lesado. Alguém que aceita passar a vida toda acatando as ordens de outro sujeito unicamente porque ele é alguns anos mais velho e está um pouco acima na hierarquia não pode passar por esperto. Absolutamente. Entraria e sairia de cena e eles nem perceberiam. Uma ação-relâmpago.

Um feriado em início de mês era o paraíso dos pequenos golpistas, a terra prometida da malandragem. Muito dinheiro circulando. Milhares de velhinhas zanzando pela cidade cheias de dinheiro, agarrando as bolsas contra o peito, tentando disfarçar o fato de estarem apavoradas. O sorriso adequado, o grau certo de reverência pela sua idade, algumas frases educadas e estava feito. O ser humano ainda não havia aprendido a viver num mundo em que precisa desconfiar de todos o tempo inteiro; talvez jamais aprendesse. Era um negócio que ia longe, excelente carreira, se você não fosse muito ambicioso.

Tragou fundo o cigarro e atirou a bituca longe. Ergueu o rosto para o sol de maio e abriu os braços. Soltou a fumaça pelas narinas. Tudo daria certo. Ele era o rei do mundo da falcatruagem.

Virou para o balcão.

– China, um conhaque. E, pelo amor de Deus, sem gelo, China. Mania idiota de enfiar gelo em tudo.

O chinês miúdo aproximou-se.

– Mêo ô chêo? – perguntou, com a voz fina e cantada.

– Cheio.

O chinês encheu dois terços de um copo americano com o líquido vagabundo cor de cobre. Bebeu em dois grandes goles rápidos e fez uma careta, só por apego à tradição, quase um tique; gostava do gosto da bebida.

– É bom pra ficar esperto – comentou.

– Conhaque. Bom. Plá glipe também, né? Com mel – concordou o China. Era uma caricatura perfeita.

Também era simpático, aquele chinês. Mas se enfurecia rápido. Um ou dois segundos eram o suficiente para fazê-lo ferver, a pressão subir a níveis incontroláveis, a tampa ser arremessada longe. Pequeno e franzino, uma vez o viu surrar dois grandalhões dentro do bar, com um taco de sinuca. No meio do entrevero, o taco quebrara, e o China enfiara uma das pontas de madeira afiada no abdômen de um dos homens. O outro fugira. Tentativa de assalto, a polícia fingiu acreditar. Na verdade, os dois imbecis haviam mexido com a chinesinha de 14 anos que ficava no caixa.

A velhinha estava demorando a sair do banco. Na certa, se enrolara com o caixa eletrônico. Uma velhinha indefesa, despreparada para o mundo em que vive mesmo depois de 60 anos. Não sentia culpa. “Ela faz mendigos dos homens que a acolhem”, lembrou. Dá pra justificar tudo lendo os livros certos. Todos unidades da mesma falange, reagindo a estímulos, fazendo o seu trabalho. Sem moral ou objetivo, nada de teleologia, só idiotas em meio ao caos. O cão corre atrás do gato, que corre atrás do rato, que tenta furar o saco de cereais do homem que bate no cachorro. Agora imagine isso num imenso ecossistema. As pessoas fazem o que precisam fazer.

Se alguém lhe perguntasse quando começara, não saberia dizer. Sabe alguém identificar o exato momento em que começou a se tornar o que é?

A velhinha apontou na porta do banco. Rapidamente, ele se pôs a atravessar a praça, sob o sol, um calor que era como uma febre. Perfeito. Toda a dor era suportável. Cruzou a rua. Fingindo distração, aproximou-se rapidamente da velhinha. Um esbarrão. Virou-se de pronto, um imenso e gentil sorriso nos lábios.

– Mil perdões. A senhora está bem? – perguntou.

De repente, sentiu os pés perderem contato com o chão. Caiu de costas na calçada escaldante, um ferro apontado para cara. Merda. Em algum momento, se distraiu.

– Perdeu, vagabundo – gritou o PM, e então afetou um sorriso gentil.

Não conseguiu sentir raiva. Não era pessoal.

 

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