Lia – Capítulo 16

Foi ainda um dia desses que ela estava sozinha na rua e se deu conta de que andava sempre com os olhos cravados no chão. Por mais que tentasse cuidar da postura, por mais que estivesse feliz, animada ou deprimida, abandonada. Isso nunca se alterava. Ela caminha sempre com os olhos presos a um ponto cerca de quarenta centímetros à frente do bico do sapato. Nas pedras.

Lia caminha cabisbaixa.

Ainda agorinha, dia desses, quando se deu conta disso, ela estava com 57 anos. Ainda agora, percebeu que mantinha os olhos humildemente presos ao chão há cerca de 44.

*

Foi perto da praça Carlos Gomes.

Ela estava com a Sandra naquele momento. Indo a algum lugar, ainda que por nada nesse mundo consiga agora saber a que lugar, ou porquê. Para quê? Mas a presença da Sandra é um dado claro da memória do dia. Assim como o fato de que o ânimo das duas parecia supor que estivessem “indo”. Aquilo não era embalo de “volta”. Estavam determinadas, aceleradas, apressadas, certamente conversando, rindo, gesticulando, contentes com mais nada. Satisfeitas como sempre aos treze anos.

Mais do que muito certamente elas estariam com os olhos presos uma na outra, cabeça alta, corpo empinado. Isso foi no tempo do corpo empinado, coluna ereta, olhos no horizonte. Ou na Sandra, outro horizonte.

Isso foi no tempo, também, em que ver um mendigo se aproximando não gerava necessariamente sensações de alarme. Não dava medo e necessidade de virar, atravessar a rua. Os mendigos eram menos frequentes, mas ao mesmo tempo mais presentes. Menos invisíveis. Eram pessoas que você ajudava se pudesse. Eram pessoas.

Mas aquele senhor, não.

Era ele quem queria “ajudar”.

*

Menos de dez anos antes disso, Lia e Sandra brincavam de boneca ao lado do laguinho de um parque. Bonecas aventureiras. Exploradoras. Não eram de se acomodar longe da margem, bem seguras. E a boneca da Lia caiu no lago.

Perdeu-se.

Lábio trêmulo, ela olhou para a amiga, que sem saber o que fazer devolveu seu olhar para a mãe. Lia ainda estava a anos de se ver no papel de mãe, ainda estava naquele dia a anos do momento em que valorizaria aquele olhar da Sandra e a confiança que ele representava. Ela naquele momento ainda vivia num mundo apenas magicamente protegido pelas mães.

E a dona Norma resolveu. Ela sempre resolvia.

Mas o que ela fez foi chamar uma menina de rua que estava por ali, mendiga ou o filha de mendigo, e dar um dinheirinho pra ela entrar no lago e pegar a boneca da Lia. E ela entrou. No lago frio, gosmento, no lago sujo. E pegou a boneca.

Só que em vez de entregar pra dona Norma, ela veio direto, com uns olhos pretos gigantes, deixar a boneca na mão da Lia.

Que pegou. A boneca.

Que passou para a menina a nota dobrada que a dona Norma nesse momento lhe dava.

Que agradeceu. À menina.

Agradeceu pela devolução de uma boneca que a menina jamais teria. Nunca teria como ter. E pagou por aquilo. Pelo gesto. Pagou porque a menina entrou na água suja e salvou sua filha. Que nunca teria. E devolveu.

A menina foi embora, chamada de longe pela mãe.

Lia nunca se sentiu tão pouca. Tão rala. Tão rasa. Tão cabisbaixa.

*

Quando o mendigo se aproximou delas, Lia não tinha na memória o rosto de olhos imensos da menina do parque. Eram tempos em que mendigos eram menos invisíveis, mais presentes, afinal.

Mas quando novamente a calçada diante delas se viu vazia, quando apenas a lembrança imediata do encontro ocupava a memória de Lia, com o mendigo já dois passos para trás, seguindo rumo a sair para sempre da sua vida, foi aí que aquele olhar retornou e caiu como um toldo sobre o mundo e sob o sol. Como divisória entre Lia e aquele homem, que era o mundo. Para sempre.

Logo depois do instante em que, direto na cara da Lia, o mendigo disse apenas, contrafeito, talvez irritado, mas não agressivo:

— Por que essa cara erguida? Baixa a cabeça, orgulhosa.

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