Pensar dói

Eu já estava em vias de me atrasar quando o Fusca creme estacou às margens da avenida, onde eu pedia carona. Era comum que universitários sem dinheiro para o ônibus, como eu, se concentrassem naquele ponto, esperando a boa vontade de alguém que fosse em direção ao campus, sete quilômetros adiante, e que se dispusesse a compartilhar um lugar em seu automóvel com estudantes duros. Aliviado, abri a porta e, meio sem jeito, acomodei-me no assento dianteiro, ao lado da motorista solidária – uma mulher miudinha de cabelos brancos e muito curtos, que, por detrás dos óculos de aros finos e redondos, trazia um olhar de sincera satisfação. Estendeu-me a mão, num cumprimento com o vigor que convém e disse “Vamos lá, rapaz!”, arrancando com o carrinho.

Salete era doutora em filosofia e lecionava na universidade. Tinha por hábito parar naquele ponto todo-santo-dia, dispondo-se, de bom grado, a lotar seu Fusquinha com aquela molecada que ficava ali, com o polegar esticado. Tenho pra mim que Saletinha – não reparem na intimidade – não era movida apenas por solidariedade humanista, mas, principalmente, pelo ímpeto de exercer as artes da própria filosofia: “a mãe de todas as ciências” e “o caminho único para a emancipação”, como gostava de repetir.

É que, conforme pude perceber assim que o carro avançou pela avenida, as caronas da professora eram temáticas. Salete puxava papo a partir de uma premissa ou de um fato qualquer – por mais banal que este pudesse parecer – e, ao longo da prosa, ia incitando os caroneiros a refletirem, lançando mão de perguntas simples, em uma estratégia que me cheirava a Sócrates. Não era raro que, durante o trajeto, elas nos pegasse em contradições vexatórias ou que nos déssemos conta do quão frágeis eram nossas certezas iniciais. De quando em quando, nos deixava sem palavras e, atirava, então, uma de suas provocações que caía como um bordão: “Pensar dói, né, benzinho?”.

Pouco depois que subi pela primeira vez no Fusca de Saletinha, o tema da carona surgiu por acaso, depois de o carro trepidar sobre um buraco ordinário aberto no asfalto. A conversa enveredou por impostos, FMI (era 2002 e o Brasil vinha estrangulado por dívida externa galopante) e corrupção, passou pela indústria automobilística, indo parar em padrões de consumo do brasileiro médio. Com pleno domínio da cena, a professora nos conduzia pelas questões que apresentava e fazia com que chegássemos a nossas conclusões a partir de nossas respostas. “O processo é dialético”, dizia. Antes de eu apear, já no campus, Salete se dirigiu a mim, como quem dá uma lição importante: “Não se esqueça, benzinho: Tudo está relacionado a tudo, o tempo todo”.

Lembrei-me da Saletinha há pouco e por acaso, antes de começar a redigir esta crônica. Eu estava propenso a me debruçar sobre a política (vejam a ousadia), mas os absurdos e escândalos têm se sucedido a uma velocidade tal, que eu jamais conseguiria acertar o foco. Não é para menos. As irracionalidades estão aí, aos borbotões: Reforma da Previdência às escuras, para a qual se pretende comprar apoio parlamentar com R$ 40 milhões em emendas (até uns anos atrás, isso chamava-se “Mensalão”); ministro do Meio Ambiente que some com mapas de área de preservação; ministro da Justiça que reage com um “pode acontecer”, quando o Exército fuzila um negro com 80 tiros. Enquanto isso, mantêm-se a isenção tributária a igrejas evangélicas e o Queiroz cai no esquecimento.

Como já se escreveram muito sobre tudo isso e exponencialmente melhor do que eu jamais seria capaz de fazer (estão aí Gaspari, Galindo e afins), achei por bem me recolher à minha insignificância e deixar de coisas. Talvez seja melhor. Ademais, você já deve estar farto e/ou enojado de tudo isso. É como vêm dizendo por aí: por esses dias, é impossível estar feliz e bem informado, ao mesmo tempo. Ou uma coisa, ou outra. Haja estômago, camarada.

Por meu turno, no entanto, não posso deixar de observar duas excrescências recentes: a proposta de tirar de Paulo Freire o título de patrono da educação; e o anúncio do corte de verbas para ensino de filosofia e sociologia. Sobre a primeira medida, em uma reação rápida e rasa, exclamei em tom irônico e de chacota: “Pronto! Agora estão solucionados os problemas da educação – inclusive o analfabetismo funcional do presidente e de sua caterva”. Para a segunda iniciativa, não me ocorreu outra ideia, senão ponderar o que Salete diria a respeito dessa sandice toda.

Tive ímpetos de correr à avenida, esperando que a velha professora passasse e me oferecesse carona, mas seria inútil. A essa altura, a Saletinha deve ter se aposentado e encostado o Fusquinha. Em um exercício de imaginação feito a partir do retrospecto da doutora, contudo, arrisco dizer que ela não se assombraria e, à luz da razão que sempre a guiou, apontaria, triunfante, que essa horda está a fazer exatamente o que era de se supor que fariam. Salete só precisaria do tempo de uma carona para ligar todos os pontos de disparates dessa curta conjuntura e ainda arremataria, de forma lógica: “Tudo está relacionado a tudo, o tempo todo”. Pensar dói. Talvez por isso gente como Saletinha bote tanto medo.

 

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