Tereza: uma vida de luta e racismo dentro da UFPR

Única servidora negra do setor de Educação da UFPR virou tema de TCC. Mas diz que racismo impediu que ela tivesse um diploma

“Esse aqui é o espaço da criança. Eu ajeitei a sala, fiz o projeto. O lado de dentro da janela eu mandei pintar para dar um colorido. Também tem um cercadinho para as crianças menores… Isso fora outros cômodos que arrumei, sempre fui de criar espaços”, diz a aposentada Maria Tereza da Silva, de 63 anos. Única servidora negra do setor de Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR), ela fala com orgulho e carinho do trabalho que desenvolveu e o legado que deixou na instituição.

A sala com brinquedos, fraldário e lugar para amamentação, destinada aos filhos de quem frequenta a universidade, é apenas um deles. Com uma lista de iniciativas bem sucedidas na UFPR, Tere, como gosta de ser chamada, se aposentou em agosto. Mesmo assim, ao revisitar o espaço da criança para esta entrevista, não parou quieta um minuto: checou se tinha água quente na torneira, organizou brinquedos que estavam na gaveta errada e já queria dar um jeito na porta do cercadinho, que não fechava. “Vou ter que falar com o pessoal pra dar um jeito nisso.”

Tereza, eficiente, organizada, batalhadora e querida por todos, é praticamente uma celebridade no campus da Reitoria, no Centro de Curitiba, onde fez sua carreira. Uma rápida caminhada pelo pátio lhe rende abraços e mensagens de carinho dos estudantes, que não hesitam em dizer o quanto sentem sua falta.

“Toda a minha vida na universidade foi assim, com carinho, com jeitinho. Eu trato o jardineiro como trato o reitor, ou as meninas da limpeza como trato as professoras”, enfatiza.

“Lavei muito chão na Reitoria”

A trajetória de Tere na UFPR começou em 1985, aos 30 anos. Nascida em Londrina, ela se mudou para Curitiba ainda menor de idade. Na capital, foi doméstica, cabeleireira, arranjou emprego em farmácia, em escritório de olaria.

Foi na UFPR, no entanto, que ela se firmou de vez. “Entrei na universidade como servente, porque não sabia que tinha concurso público e porque precisava trabalhar, tinha um filho pequeno e logo descobri que estava grávida de novo. Lavei muito chão, muito banheiro aqui, e me orgulho disso. Aquele saguão branco de mármore a gente limpava direto, assim como o pátio ali fora. Era a mulherada que fazia todo o serviço pesado. Eu era tão magrinha na época que era carregada por aquelas máquinas de limpeza. Era um sarro, mas era divertido, não me arrependo.”

Cinco meses depois, incentivada por colegas, Tere decidiu dar mais um passo e fazer concurso público, para garantir de vez seu lugar na UFPR. Não foi fácil conciliar a vida de mãe solteira de dois meninos e uma menina, com o trabalho e os estudos. Mas, mais uma vez, ela venceu.

“Eu dei um salto grande e passei no concurso para trabalhar no antigo Departamento Pessoal, , hoje Progepe [Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas]. O povo ali era maravilhoso, alguns técnicos me ajudaram muito. Diziam que eu era caprichosa e inteligente, e me incentivaram a fazer o concurso. A máquina de escrever era daquelas de catar milho, você nem imagina. Eu saía fazer o meu serviço e depois corria para estudar. Eu amava aquilo”, afirma.

Se havia alguma dúvida de que a UFPR seria a segunda casa de Tereza, o Departamento de Pessoal foi a certeza que faltava. “Para mim, esse setor é o coração da universidade. Fico muito feliz em poder dizer que comecei pelo primeiro degrau e por isso a minha caminhada foi sólida. Eu era solicitada em tudo quanto era departamento. Eles diziam ‘Tereza, você é cria do RH’, mas sempre que precisavam de auxílio ou tinham alguma dificuldade, me cediam. Aí eu era transferida, fazia o meu trabalho e depois voltava”.

Questionada sobre o motivo pelo qual escolheu a Federal como lugar de onde tiraria o sustento para a família, ela logo responde: “Eu e a universidade nos encontramos. Para mim, ela é uma mãe, que viu que eu precisava de ajuda e me deu carinho e amor, e eu retribuí. As chances que eu tive aqui não teria em lugar nenhum e sou muito grata por isso”.

A batalha contra o racismo

Tere fala com tanto amor da UFPR que uma parte delicada de sua história só vem à tona quando o assunto é a escolaridade. Por estar no centro de um polo do conhecimento e ter sido sempre dedicada aos estudos, era de se esperar que ela adentrasse o mundo acadêmico e saísse da universidade com ensino superior. Mas não foi o que aconteceu. E o culpado, para a aposentada, foi o preconceito contra a cor da sua pele.

“Assim como encontrei pessoas maravilhosas no meu caminho, também conheci as perversas. Elas me impediram de crescer aqui dentro e eu acredito que foi por causa do racismo. Ali na chefia, naquela época, toda vez que eu dizia que queria estudar, me falavam que não dava ‘por isso e aquilo’. Com 63 anos de vida, a maioria deles na universidade, era para eu ter me aposentado doutora, mas não tive essa oportunidade porque não me deram chance. Enquanto isso, colegas que entraram junto comigo lá atrás hoje estão fazendo doutorado”, desabafa, emocionada e com lágrimas nos olhos.

Com essa força de vontade, a sede de estudar, e enfrentando o racismo de cabeça erguida, Tereza terminou o ensino médio enquanto trabalhava na UFPR. “Só fui me dedicar aos estudos depois de velha. Mas aprendi tanta coisa que me sinto uma doutora, sabe? Você aprende com os alunos também. A única diferença é que eles recebem o canudo e você, não.”

A servidora pode não ter um diploma universitário, mas as dificuldades que enfrentou a tornaram ‘bacharel’ em enaltecer a negritude e lutar contra o racismo. Ensinamentos que levou para os filhos, hoje com 30, 36 e 40 anos.

“Eu percebia que as pessoas me olhavam e me tratavam diferente, e senti que precisava mostrar que eu era igual a elas. Por isso, ensinei meus filhos a não ficarem de mal com a vida e a amarem os seus cabelos e a sua pele. Quando eles eram pequenos, eu dizia coisas como ‘vejam bem, os brancos precisam ir para a praia para ficarem mais ou menos corados e vocês não, vocês são privilegiados’ ou ‘olha só aquela menina de cabelo lisinho, ela sofre muito para fazer cachinhos’. E funcionou, hoje eles são pessoas bem resolvidas, que se amam muito.”

A couraça que Tere construiu para sobreviver ao preconceito, no entanto, não era completamente impenetrável. Mesmo assim, ela respirou fundo, focou nas suas raízes e seguiu em frente. “No fundo, no fundo, às vezes, nem eu sabia lidar com o que acontecia comigo. Chegou uma hora que o preconceito transbordou, mas eu arranjava força. Sou uma mulher negra batalhadora e sempre procurei na história, na minha cor, algo em que pudesse me firmar. A verdade é que somos todos iguais, nosso sangue é da mesma cor, a diferença está só na pigmentação da pele.”

Quem disse que é preciso diploma para fazer história?

A força de Tereza chamou a atenção de duas alunas do curso de Pedagogia da UFPR, Jéssica Cavalheiro e Rhuana Fraguas, que fizeram o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) no ano passado sobre a vida da servidora. Tere ficou encantada por participar do projeto das meninas. “Foi maravilhoso. Fiz um apanhado, dei uma resumida de tudo o que passei. Tem coisas legais e outras nem tanto, que achei melhor não contar”, explica.

Para esta reportagem, ela também preferiu deixar de lado o período da infância e adolescência no interior do Paraná. Criada na roça, Tere apenas mencionou que sofreu com um pai alcoólatra e teve relacionamentos conturbados com a família. “Dessa parte prefiro não falar, porque já tivemos muita emoção por hoje”, diz.

Felizmente, nem só de dor e tristeza é feita a trajetória de Tere e, para ela, poder compartilhar as suas experiências num trabalho acadêmico é uma baita oportunidade de fazer os outros refletirem sobre a vida.

“Vocês vivem em um mundo diferente. Eu acho a minha história bonita porque sobrevivi a tudo isso e queria mostrar que é possível ter força. Porque às vezes as pessoas dão uma importância enorme para certos perrengues, quando na verdade não é bem assim. Quando eu via as alunas chateadas aqui na faculdade, eu sempre dizia ‘ah, se vocês soubessem… Existem coisas muito melhores do que ficar se preocupando com isso’”, diz a conselheira para todas as horas.

Aposentada e feliz

Falando em coisas melhores, após décadas de dedicação à universidade, Tere finalmente conseguiu se aposentar, em 27 de agosto de 2018. Desde então, ela usa o tempo livre para manter a casa organizada (exatamente como fazia no trabalho, deixando tudo nos trinques), passear e aproveitar os filhos e netos.

“A vida de aposentada está maravilhosa. Tenho um filho e um neto que moram comigo, fora minha outra netinha que vai fazer quatro meses. Ela é bochechuda e tem perninhas que parecem pãezinhos. Quando dizem que ela é a cara da vó, fico toda faceira”, declara, com um sorrisão no rosto.

Com o trabalho na universidade, Tereza conseguiu conquistar o sonho da casa própria, no Cajuru, e comprar um carro. Agora, pretende pensar mais em si e investir parte da aposentadoria para conhecer novos ares.

“Eu ando viajando para as praias do Paraná e Santa Catarina mas, se Deus quiser, ainda quero fazer uma viagem para fora, nem que seja aqui do lado, para Buenos Aires. Eu prefiro sonhar até onde dá, aí depois é consequência.”

E já deu tempo de sentir saudade da UFPR? “Só das pessoas, das alunas, que são as minhas filhotas, dos colegas, mas não do trabalho em si. Nem da responsabilidade de acordar cedo. Tem gente que sugere que eu faça algum curso para ocupar a cabeça, mas eu digo pra quê? A minha vida está maravilhosa. Eu tenho três filhos que são seres humanos incríveis, uma bênção divina para mim! Tem coisa melhor que isso?”, questiona.

Não tem não, dona Tereza, não tem não.

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