Vinte anos sem o “buraco negro” da política paranaense

Há 20 anos, saía de cena o homem que dominou a política paranaense como ninguém mais conseguiu. Mas o que mudou no estado sem a presença de Aníbal Khury?

Em dezembro de 1990, Roberto Requião cometeu um erro. Recém-eleito para seu primeiro mandato de governador do Paraná, decidiu sair em viagem para Paris durante a articulação para a presidência da Assembleia. Seu candidato, Caíto Quintana, recebeu uma única recomendação: fizesse acordo com qualquer um, menos com Aníbal Khury. A ideia era tirar da jogada o homem que comandava com mãos de ferro o Legislativo.

Aníbal foi a Caíto. Quis um acordo, mas o candidato oficial disse que estava proibido de aceitar qualquer conversa com ele. Ordens são ordens, fazer o quê? Aníbal disse que entendia e foi embora. Imediatamente, começou a trabalhar na própria candidatura. Se não podia ser primeiro-secretário de Caíto, num acordo, seria presidente sem acordo. A ousadia pode parecer pequena para quem não conhece a política provinciana que domina esse tipo de eleição.

Aníbal na época da presidência do Atlético: segundo ele, futebol era escola para “bom político”.

A relação do Legislativo com o Executivo (no Paraná e em todo lugar) é de submissão, eterna e incondicional. Ninguém se elege presidente sem a bênção do governador. Exceto, claro, Aníbal Khury. Quando Caíto viu o buraco em que tinha se metido, correu atrás de um acordo – mas agora quem não aceitava mais era o adversário. No primeiro turno, os dois terminaram empatados. No segundo, Aníbal ganhou por um voto.

“Foi a única vez que alguém ganhou a presidência sem o apoio do governador”, diz o neto Alexandre Cury, herdeiro político de Aníbal, não sem certo orgulho. Aníbal seguiria presidente até sua morte, em 1999. Sua saída de cena, que completa duas décadas em 2019, necessariamente mudaria a cena política do estado. O que ninguém imaginava era o tamanho da mudança.

Mais caciques dividem o poder

“A principal mudança com a morte do Aníbal foi uma democratização da política paranaense”, afirma um deputado estadual que já estava na Assembleia no período de Aníbal. Se antes havia um cacique só, hoje há vários, que precisam disputar o poder entre si e negociar. “O Aníbal era a versão política de um buraco negro – todo o poder era sugado por ele”, diz o parlamentar.

O próprio Requião, que de início tentou dobrar Aníbal, teve que no fim das contas ceder ao presidente da Assembleia – assim como tinham feito todos os seus antecessores e como faria seu sucessor, Jaime Lerner.

“Ele tinha um poder absurdo sobre o governador”, diz outro deputado – aliás, o fato de as fontes, ainda hoje, vinte anos depois, não quererem se identificar ao falar com a reportagem, mostra o tamanho e a durabilidade do poder de Aníbal. “A mesma coisa com o Tribunal de Justiça. Ele mandava e desmandava”, afirma.

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Na Assembleia, quando não era presidente, era primeiro-secretário – o cargo que comanda toda a verba do Legislativo (carros, cargos, contratos, reformas…). Eleito deputado pela primeira vez em 1954 (depois de dois mandatos como vereador em União da Vitória), passaria quase cinco décadas no Centro Cívico de Curitiba. Três delas como imperador.

Em plenário, pobres dos outros deputados. “Ele acabava a votação independente de quantos votos houvesse. Se alguém reclamava que não tinha votado, ele só dizia: Inês é morta. E tocava em frente”. Na organização das bancada, também mandava. Diz a lenda que quando Jaime Lerner, já governador, saiu do PDT para o PFL, Aníbal reuniu os deputados e apontava o dedo de um em um dizendo: “Você fica no PDT; você sai”.

Promessas cumpridas

Mas de onde vinha todo esse poder? “Principalmente pelo fato de ele ser um sujeito de palavra”, diz Luiz Claudio Romanelli, deputado desde os anos 1990. “Se ele prometia uma coisa, ninguém duvidava que ele ia fazer. E isso foi criando uma mística de que todo mundo podia confiar nele, algo que nunca foi rompido”, afirma.

Aníbal na Assembleia: cinco vezes presidente, até quando o governador não queria.

Para o neto, Alexandre, o poder vinha também do poder de reunir pessoas. Símbolo máximo disso eram os cafés da manhã em sua casa, na Visconde de Guarapuava. A partir das 7h, ele e dona Niva recebiam os deputados para discutir a pauta do dia. Às vezes o próprio governador de plantão (eles passavam, Aníbal ficava) comparecia. “Muita coisa era decidida ali”, afirma o neto.

Fato é que a partir do final dos anos 1980, Aníbal se tornou uma locomotiva de poder difícil de parar. E isso tinha consequências.

Com ele aqui, como seria?

Desde a morte de Aníbal, é fácil ver que muita coisa mudou na Assembleia. Em primeiro lugar, ninguém mais conseguiu ficar nos eu lugar. O rodízio de presidentes tem sido mais ou menos regular. Desde sua morte, houve Nelson Justus, Hermas Brandão, Valdir Rossoni e Ademar Traiano.

Mas há mais: a Assembleia perdeu poder frente ao governo do estado, ao TJ, à imprensa e, principalmente, passou a estar frequentemente no centro de escândalos. Vieram os Gafanhotos e os Diários Secretos, só para citar dois casos célebres. Mas há muitas outras denúncias menores que, antes, não eram frequentes. Não é difícil ligar as duas coisas: sem o poder de Aníbal, aquilo que era mantido entre quatro paredes se tornou visível.

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Para um crítico de Aníbal, o antigo deputado “não duraria um mês na Assembleia hoje” com seus antigos métodos. “Tudo mudou. Acho que mudaria mesmo com ele por aqui, mas sem ele foi mais rápido”, afirma. Outros afirmam que a ligação entre as mudanças (maior transparência, menor controle sobre o que se noticia) e a ausência do pulso de ferro do velho caudilho não é tão clara.

“O que aconteceria se meu avô estivesse aqui é que a Assembleia seria mais valorizada”, diz Alexandre, apontado unanimemente como o melhor articulador da Assembleia hoje – o que o torna, em certo sentido, digno da herança do avô.

As acusações

Aníbal esteve longe de ser considerado santo. Mesmo o regime militar, tão complacente com abusos de todos os lados, processou o deputado usando o AI-5. Costa e Silva cassou-lhe o mandato e determinou a perda de direitos políticos por dez anos. A família gosta de lembrar que o processo tinha a ver com atos subversivos. Mas isso passa longe der ser toda a verdade.

Inauguração do Parque Aníbal Khury, em 2008: a viúva Niva, hoje já falecida, e o herdeiro político, Alexandre.

O relatório final da Comissão Estadual da Verdade, que investigou a ditadura no Paraná, mostra que Aníbal foi investigado principalmente por denúncias de grilagem de terras indígenas. “Ficou consignado que Aníbal Khury teria praticado ilícitos como abuso de poder político e econômico, ‘tráfico de influência’, ‘corrupção’, ‘enriquecimento ilícito’ e, no que se refere ao tema em questão, apropriação fraudulenta e grilagem ‘de extensas áreas de terra no Paraná’”, diz o texto.

Nesse ponto, as coisas mudaram menos. Os sucessores de Aníbal na presidência da Assembleia do Paraná têm sido regularmente acusados de atos graves de corrupção.

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