Em caso de assassinato de negros, favor não incomodar o padre

Curitiba faz vista grossa para muita coisa. Mas ai de quem atrapalhar o trânsito ou a missa

Fazia tempo que Curitiba não tinha um escândalo. De repente, todo mundo está falando do caso da Igreja do Rosário. A Câmara de Curitiba está em polvorosa, muita gente querendo cassar o vereador que entrou na igreja durante um protesto. O caso rendeu também na Assembleia, na Câmara, até em Brasília. Sergio Moro e Jair Bolsonaro acharam tudo um absurdo e, claro, vão tentar tirar uma casquinha do episódio.

Talvez por isso tudo valha pensar o que foi que gerou toda a comoção.

1- Um grupo protestou contra a morte de negros.
2- Como se tratava de crimes de racismo, o protesto foi marcado para acontecer diante de uma igreja erguida por pretos escravos, para que eles pudessem pedir intercessão divina.
3- O padre e os fiéis reclamaram do barulho. Alguém pediu para darem uma segurada.
4- Encerrada a missa, parte dos manifestantes, liderada pelo vereador Renato Freitas, entrou na igreja, gritou palavras de ordem, estendeu faixas. Chegaram a gritar que havia racistas ali.
5- Ninguém quebrou nada,não houve vandalismo, pichação, a igreja foi deixada exatamente como antes.

Foi isso: um protesto.

Acontecem coisas bem mais graves todos os dias na cidade. Todos os dias tem gente dormindo na rua, gente passando fome, gente que não consegue atendimento médico. Todo dia tem gente apanhando da polícia, mofando em celas sem julgamento, morrendo nas mãos de assaltantes e do tráfico. Todo dia.

Eu particularmente estava incomodado com a decisão do vereador. Em tese, podendo não atrapalhar os outros, melhor. Sempre.

Mas começaram a falar tanta bobagem que me irritei mais com o noticiário vulgar e tendencioso. E resolvi que era bom dizer algumas coisas.

Vi o jornal do Meio-Dia da RPC nesta terça. Teve até editorial, dizendo que igreja não é lugar de protesto. Pode ser. Esqueceram de avisar o reverendo Martin Luther King, mas beleza. O mais chocante era o clima de terror: o escândalo foi tanto que parecia que tinham tacado fogo na catedral com um monte de gente lá dentro.

Renato e o pessoal do Núcleo Periférico provavelmente não deviam ter entrado na igreja, por mais de um motivo. Com alguns deles eu pouco me importo: foi deselegante, por exemplo. Ora, se você quer chamar a atenção para a morte contínua e silenciada de milhares de pretos e pobres no país, dane-se a elegância.

Nós ficamos vendo filmes e mais filmes sobre os Panteras Negras e Malcolm X e achando tudo muito bonito. Mas na hora que um preto levanta a cabeça e ENTRA NUMA IGREJA, Minha Nossa Senhora, como sofremos de pavor.

O verdadeiro motivo para Renato não ter entrado ali era simples: ele deu munição para todo tipo de demagogia barata, para todo tipo de ataque rasteiro, para todo tipo de preconceito político, social e racial.

O pavor da RPC é significativo: o próprio padre, entrevistado por eles, diz que conseguiu levar a missa até o fim, apesar do barulho lá fora.

Dificilmente alguém está achando que a fé católica está em risco em Curitiba, que ninguém mais vai conseguir rezar em paz.

Aliás, quando entram em casas de umbanda e candomblé fazendo arruaça, cometendo crimes de racismo e intolerância religiosa a tevê não faz esse escarcéu todo. Nem os políticos.

Quando é o caso de proteger o mais fraco contra o mais forte, dificilmente alguém se lembra sequer de parecer indignado. Mas se os pretos mexem com alguém, Deus o livre. Que se casse esse homem.

Os jornais foram entrevistar os vereadores sobre isso. Entrevistaram Eder Borges, cassado por ter concorrido ao cargo sem ter prestado contas de sua campanha anterior. Um sujeito truculento sem e menor grau de civilidade, fazendo pose de mocinho para defender o Vaticano contra os pretos do Núcleo Periférico.

É preciso ter um pouco de vergonha na cara ao se fazer jornalismo.

Renato é um sujeito impetuoso, erra muito, acerta outro tanto.Mas, mais importante que isso: não é bandido.

Renato Freitas é um vereador eleito (dentro da lei, o contrário de Eder Borges) para representar o povo preto. Algo raro por aqui. E faz o seu papel com estridência, sim.

É que durante três séculos e meio os pretos não tiveram vereador nem representação política. Serviram só para trabalhar sem reclamar e para apanhar – primeiro dos donos de escravos, depois da polícia. Agora meio que devem ter cansado.

Entraram em um prédio público. Não destruíram nada. E reclamaram da morte de duas pessoas, de dois assassinatos violentos, dentre tantos cometidos contra negros.

Se eu acho que Renato errou? Acho.

Só acho que é muita hipocrisia querer linchar o sujeito por entrar numa igreja e dizer que é preciso parar de matar pretos neste país.

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