O astrólogo que sabia javanês

Olavo de Carvalho incorporava uma contradição que faz parte do Brasil hoje: apesar de ficar famoso pelas suas inúmeras sandices e de fundamentar um discurso baseado em leituras rasas (se existentes) de vários autores, jogados num frenético “name-dropping” para plateias impressionáveis de pouca ou nenhuma leitura

Eu estava no terceiro ano da Faculdade de Direito da UFPR e lia O Presidente que Sabia Javanês, coletânea de crônicas de Carlos Heitor Cony e de cartuns de Angeli na Folha de S. Paulo sobre o então presidente FHC. O título da obra vem de um texto que comparava FHC ao personagem de Lima Barreto, que dizia que falava javanês, mas não falava, e era tratado com deferência porque ninguém mais falava o idioma. Foi coincidentemente o mesmo período em que tive contato, pela primeira vez, com Olavo de Carvalho, convidado a palestrar pelo PDU, partido acadêmico da direita do Centro Acadêmico Hugo Simas, no Salão Nobre da Faculdade.

Chamou-me a atenção o desrespeito à proibição de fumar no salão sem ser admoestado por ninguém da administração do CAHS. Demonstrava-se, por meios tortos, a veneração de seus discípulos àquele personagem que era pessoalmente detestável. Assim que ele começou a falar, impressionou-me a velocidade de informações desconexas que eram jogadas à plateia e a quantidade de expressões chulas. Em uma hora de “palestra”, Olavo misturou cultura greco-romana com cultura islâmica, anticomunismo, Kant, cristianismo, Leibniz, liberalismo, uma versão cínica/falsa da história da escravidão, com muitos palavrões e piadas de péssimo gosto.

A sopa de conceitos e ideias absurdas e/ou falsas, presunção, falsa erudição, anticomunismo vulgar e paranoico, obscurantismo, armamentismo, cristianismo de Idade Média, conspiracionismo e astrologia, adicionada à persona blasé, fumante, caçadora e grosseira popularizou-se junto com as redes sociais. A extrema-direita pôde, enfim, sair do armário e ganhar uma roupagem política minimamente aceitável pelo establishment (no Brasil, o bolsonarismo) e pseudo-intelectual. Defender, por exemplo, que a terra é plana representaria uma “dúvida razoável”, pois um autodenominado filósofo teria dito isso.

Olavo, assim, tornou-se um farol para a nova direita brasileira – que, de nova, nada tinha nem tem. O pensamento sofisticou-se, por assim dizer, ele obteve novas formas de financiamento entre empresários e seus alunos do “Curso de Filosofia” e teve ascendência suficiente para emplacar quatro ministros no início do governo Bolsonaro, incluindo o pior de todos eles, Ernesto Araújo no Itamaraty, que causou danos à imagem brasileira no exterior que não serão desfeitos tão facilmente.

A sopa de conceitos e ideias absurdas e/ou falsas, presunção, falsa erudição, anticomunismo vulgar e paranoico, obscurantismo, armamentismo, cristianismo de Idade Média, conspiracionismo e astrologia, adicionada à persona blasé, fumante, caçadora e grosseira popularizou-se junto com as redes sociais.

Noutras palavras, Olavo de Carvalho incorporava uma contradição que faz parte do Brasil hoje: apesar de ficar famoso pelas suas inúmeras sandices e de fundamentar um discurso baseado em leituras rasas (se existentes) de vários autores, jogados num frenético “name-dropping” para plateias impressionáveis de pouca ou nenhuma leitura ou conhecimento de ciências sociais, ele era uma das pessoas mais influentes do Brasil nos últimos anos. Nunca houve um acadêmico ou escritor que tenha conseguido emplacar quatro ministros de Estado e tantos nomes obscuros em segundo escalão.

Olavo era a pessoa certa no momento certo, entretanto. Aproveitou-se da onda mundial de extrema direita, do bolsonarismo e do antipetismo fervoroso, emprestou um verniz – ou talvez um óleo de peroba? – com pinceladas de intelectualidade, messianismo e religiosidade de péssima qualidade a esses afetos e usou o ressentimento e a ignorância de muitos jovens universitários e idosos contra o establishment para ser ouvido por um país inteiro. Ironicamente, morreu de uma doença da qual zombou, para a qual já há vacina e que levou mais de 620 mil almas brasileiras, boa parte delas em razão do governo justamente ouvir suas palavras.

Vão para o túmulo sua arrogância, suas bravatas, suas brigas com a realidade e suas pérolas; de agora em diante, qual “intelectual” dirá que “tem dúvidas” se a terra é redonda? Que as letras dos Beatles eram escritas por Theodor Adorno? Que as vacinas endoidam? Que o ditador Ernesto Geisel era comunista? Que a Inquisição era um “tribunal democrático”? Que o cigarro não faz mal e até ajuda contra o Alzheimer? Que uma indústria de refrigerantes usa células de fetos abortados como adoçante?

Para além dos absurdos, que causam inevitável troça, ficaram discípulos que os defendem e que continuarão a trazer prejuízos ao Brasil, justificando suas ideias constantemente criminosas como pseudociência. O personagem de Lima Barreto, ao menos, sabia que não falava javanês; Olavo, ao contrário, tinha certeza de que não só falava a língua como também havia uma conspiração “gayzista” da ONU para acabar com a língua.

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